Bolhas Econômicas
Estouros de bolhas econômicas acontecem quando a confiança em um mercado naufraga. Isto pode ocorrer por diversos motivos, como a saturação por excesso de oferta momentânea.
Na virada do milênio, a crença exagerada nos negócios pontocom redundou em uma quebra monumental, que fez desaparecer, em poucos anos, trilhões de dólares do valor das ações de empresas da Web. Com bens de demanda quase sempre em alta, a exemplo dos imóveis, as bolhas podem explodir porque o preço foi inflacionado artificialmente. Todos nós estamos muito bem familiarizados com isto, já que as fraturas da crise de 2008 ainda estão expostas.
Com bens de valor intangível este risco é ainda maior, como o mercado de luxo, calcado na opinião de alguns ditos experts e na busca constante do ser humano por status. E o fenômeno é bem antigo.
Tulipomania: a bolha das tulipas de 1630
Por volta de 1630, as tulipas de Constantinopla tornaram-se extremamente populares entre os abastados de alguns países, como Holanda e Alemanha. Tê-las era símbolo de riqueza, bom gosto e sofisticação. Até livro foi escrito na época, com catálogo de espécies e dados brutos para formação de preços futuros das tulipas.1 A alta sociedade logo ficou obcecada com as espécies mais raras. Os comerciantes apressaram-se para incentivar esta paixão e as variedades preciosas eram negociadas na Bolsa de Amsterdã.

A tulipomania 2 durou o suficiente para que muitos enriquecessem e outros tantos se endividassem para investir neste crescente nicho. Até que os ricos pararam de plantar tulipas em seus jardins. Talvez tenham redescoberto flores antigas ou espécies diferentes. O que era distinção e novidade, deixou de ser. Livrar-se do estoque virou uma corrida frenética. A bolha, finalmente, estourou.
Os especuladores nessas situações (de bolha) compram um ativo com pleno conhecimento de que o preço está bem acima de qualquer “valor fundamental”, mas o fazem por esperar que os preços subam mais antes de desabar. Como os preços não podem subir para sempre, o caso envolve a crença irracional de que “o cara para quem eu vou vender é mais estúpido do que eu e não vai ver o baque chegar”.
Peter Garber – O Livro da Economia.3
O branding dos artistas e dos museus
Há uma bolha sendo escancaradamente inflada no que tange à grande parte da arte contemporânea. Cães gigantes feitos de vasos de flores, esculturas com estética de balão infantil e tubarões no formol, nadando impunemente em nossas galerias e exposições.
Cada um tem a estética que merece.
Comte-Sponville4
E os exemplos prosseguem. Quadros realistas e paródias de obras-primas produzidas por operários terceirizados, em grandes ateliês fabris, enquanto ao “artista com A maiúsculo” cabe somente dar o toque final psicodélico.5 O que se compra, em muitos casos, é um conceito duvidoso e um autógrafo caro. O artista, cada vez mais, deixa de ser um artífice para se tornar uma marca.
O fenômeno de branding não se restringe às pessoas, mas também abarca as instituições. No livro A Economia do Patrimônio Cultural, Benhamou relata como a Sorbonne negociou o direito de uso do seu nome com o emirado de Abu Dhabi, assim como o Louvre. O caso mais emblemático talvez seja a Fundação Guggenheim, cuja política de marcas está no coração do seu “negócio”.6
Em minha opinião, diversos museus dedicados à arte contemporânea serão, no futuro, mais conhecidos por sua arquitetura do espetáculo7, natureza exuberante ou participação histórica na construção dessa bolha, do que por seu acervo propriamente dito.

Arte como bens de Veblen
A arte hoje poderia ser classificada, em meu entendimento, como bens de Veblen. Levam o nome do economista que cunhou o conceito de consumo conspícuo. Nos bens de Veblen, ao contrário da lógica do “mais barato”, a procura aumentaria justamente quando os preços aumentam. Esta alta contribui para sinalizar o status do comprador.
O desejo de pagar preços altos serve mais para ostentar a riqueza que para adquirir um bem de melhor qualidade. Um bem de Veblen verdadeiro, portanto, não precisa ter mais qualidade que os equivalentes mais baratos. Se o preço cai a ponto de um menos abastado poder adquiri-lo, o rico vai parar de comprá-lo. Existem provas desse comportamento nos mercados de carros de luxo, champanhe, relógios e certas grifes de roupas.8
No caso das “grifes de arte”, a situação se agrava enormemente, porque cada obra, com poucas exceções, é única. E seu valor, altamente volátil. A prova disto são as falsificações ou as atribuições incorretas. Uma obra pode custar milhões um dia e acordar no outro valendo praticamente nada, desde que algum especialista renomado confirme (ou não) a sua autoria.
Por que a arte pode perder instantaneamente a sua importância social e valor econômico? Porque, com algumas exceções, como as ilustrações científicas, quem compra uma obra não a compra principalmente pelo seu valor de uso, como decorar a casa ou fruí-la artisticamente. O comprador objetiva, com frequência, adquirir membresia no seleto clube dos colecionadores.
Se fosse pelo prazer da arte em si, todos iriam se satisfazer com uma cópia bem-feita. O consumo artístico está muito mais atrelado ao fetiche da procedência do que à qualidade do produto. Nos documentários O Preço de Tudo e Fake Art, no filme Incógnito e no livro Eu fui Vermeer9, este fenômeno se encontra ricamente ilustrado.
Contudo, quanto mais seleto e subjetivo for um mercado, talvez menos os consumidores sejam capazes de identificar a formação e explosão de sua bolha!
A arte e a nossa qualidade de vida: refletindo sobre nossas decisões pessoais
Por tudo exposto até aqui, um artista não deveria se deixar levar, simplesmente, por estilos predominantes ou pela busca por originalidade a qualquer custo. Os artistas que se mantêm íntegros, procurando calcar sua produção em valores genuínos, são aqueles, na minha opinião, com potencial de dar as melhores contribuições.
Um colecionador poderia considerar emprestar ou doar sua coleção para um museu, onde a arte beneficiaria a todos, não somente quem a adquiriu. O historiador André Boulanger cunhou o termo evergetismo, que consiste na prática do bem e do beneficiamento da coletividade com suas próprias riquezas. O mecenato, neste sentido, parece ser bem mais nobre do que o colecionismo particular. E por não visar o lucro, sofreria menos impactos mediante o estouro de uma bolha.10
Um investidor talvez precise pensar bastante antes de alocar uma parcela considerável de seus ativos na arte contemporânea. Frequentar mais ateliês e menos leilões, onde o que se comercializa não é principalmente arte, mas um perigoso jogo de emoções e pertencimento.
Se você, como eu, é um apreciador de arte, visitante assíduo de exposições, pesquisador ou profissional da cultura, cautela com o que legitima com sua presença, trabalho, dinheiro e discurso. Não devemos nos comportar como mais uma engrenagem a mover para a direção errada aquilo que deveria alimentar a alma e não uma indústria leviana.
A arte que consumimos também impacta a nossa qualidade de vida.
Apesar de o paisagismo me parecer esteticamente bem mais interessante do que grande parte das artes visuais produzidas hoje, nem as tulipas sobreviveram à derrocada das bolhas. Não obstante a astúcia dos connoisseurs que as elegeram, a sanha dos mercadores que com elas lucraram e a futilidade da elite que, desde os tempos imemoriais, a ambos financia.
A arte de uma sociedade livre consiste: primeiro em manter um código simbólico; e depois em não temer a revisão… As sociedades que não podem combinar a reverência aos seus símbolos com a liberdade de revisão hão de deteriorar-se no final.
A. N. Whitehead11

Notas
1. The tulip book – P. Cos, 1637.
Escrito pelo horticultor holandês P. Cos, em 1637, contém um catálogo de espécies de tulipas, com seu peso e preço associados. Os dados da publicação The tulip book podem ser consultados na Biblioteca do Congresso Americano. Seu conteúdo foi digitalizado e disponibilizado on-line pela Wageningen University and Research.
2. O Livro da Economia, Niall Kishtainy e outros autores, Editora Globo Livros, 2018.
No capítulo As multidões geram loucura coletiva: bolhas econômicas (p.98), o termo tulipomania é mencionado e as informações da bolha das tulipas, elencadas neste texto, podem ser encontradas.
3. Peter Garber.
A fala nessa citação é do economista americano Peter Garber, no O Livro da Economia (vide nota 2), p.99. Tomei a liberdade de substituir a palavra “burro” por “estúpido”, pois acredito ter sido uma escolha deselegante do tradutor.
4. Tratado do Desespero e da Beatitude – Comte-Sponville.
Esta frase consta em um texto de Comte-Sponville, se não me falha a memória, no livro Tratado do Desespero e da Beatitude. A referência completa acrescentarei aqui quando tiver acesso novamente ao meu gabinete na UFMG, após o isolamento social da pandemia que me mantém em casa.
5. Ernst Gombrich e os ateliês de arte contemporânea.
Neste caso, fiz um paralelo com a crítica de Gombrich acerca da suposta “Arte com A maiúsculo”, na introdução do seu clássico livro A História da Arte.
Ao contrário dos grandes ateliês de antigamente, nos quais o artista principal era um mestre e os demais pintores, os aprendizes, nos ateliês contemporâneos os contratados parecem ser os verdadeiros artistas. Já o artista líder é um fabricante de conceitos. Para além dos aspectos autorais e mercantis problemáticos destas relações, o dilema maior é que os conceitos, com poucas exceções, são tão pueris que chega a ser constrangedor.
6. Economia do Patrimônio Cultural, Françoise Benhamou, Edições Sesc, 2016.
A partir da página 63, a autora deste livro descreve o processo de valorização econômica do patrimônio cultural por meio dos direitos de propriedade intelectual. Na página 111, Benhamou relata como o Louvre estruturou um fundo de 120 milhões de euros graças a este convênio mencionado no post.
7. Arquitetura do Espetáculo.
No capítulo Arquitetura contemporânea de museus: coadjuvante ou protagonista?, no meu livro Gestão de Projetos de Museus e Exposições, discuto o estudo de caso de Bilbao. Está no prelo, ainda, um capítulo de livro editado pela EMBRAPA, que deve ser lançado ainda em 2021, no qual abordo as implicações problemáticas da arquitetura do espetáculo na economia urbana, sustentabilidade ambiental e financeira, turismo e cultura museal.
8. Bens de Veblen.
Os bens de Veblen levam o nome do economista Thorstein Veblen e estão descritos no O Livro da Economia p. 117 (vide nota 2).
9. Documentários, filme e livro para refletir sobre o fetiche da arte.
Se o leitor se interessa pelo tema deste post, recomendo vivamente as referências abaixo:
- O Preço de Tudo (Madman, 2018, documentário) – Disponível na HBO.
- Fake Art: Uma história real (Netflix, 2020, documentário).
- Incógnito (Warner, 1997, filme).
- Eu fui Vermeer: A lenda do falsário que enganou os nazistas – Frank Wynne, Companhia das Letras, 2008 (livro).
10. Evergetismo.
O termo evergetismo, cunhado por André Boulanger e consagrado por Paul Veyne, remonta à prática antiquíssima de beneficiar a coletividade com doações, construções etc. Distingue-se da filantropia, porque há um reconhecimento social envolvido nesse mecenato, não sendo, portanto, desinteressado. Contudo, entendemos que um status adquirido com uma contribuição para todos é preferível àquele calcado exclusivamente em ações e bens que beneficiam simplesmente a si próprio.
11. Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão – Affonso Romano de Sant’Anna, Vieira & Lent, 2003.
Esta citação foi extraída da página 11 de Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão, de Affonso Romano de Sant’Anna. Este livro tece uma ácida crítica ao mercado da arte e à produção artística contemporânea.
Agradecimentos: Alberto Nogueira Veiga e Paulo Rocha, pelos preciosos comentários e sugestões.
Imagens: Tulipas e bolhas d’água (Solod Sha, Pexels), Tulipas brancas e rosas (Miranda Sehl, Pexels), The Tolip Book – P. Cos (Wageningen University and Research), Museu Guggenheim Bilbao (da autora do blog), Tulipas de Jeff Koons (Wikimedia Commons), Tulipas e livros de arte (CallyL, Pixabay).