Numa crônica escrita por Fernando Pessoa1, um personagem curioso narra seu encontro fortuito com um professor da Universidade de Tóquio. Um docente japonês que, com seu casaco ocidental pedindo escova, apresentou-se escandalosamente “humano” e parecido com “gente”. Explico melhor.

Não haveria tema para crônica, afinal de contas, até na literatura professores universitários são tomados (injustamente) por entediantes. O caso é que Dr. Boro, o japonês, era sólido e tinha sombra, ou seja, materialidade. O estranhamento surge do fato de que todo o conhecimento do narrador acerca do Japão decorria apenas das xícaras de chá e dos bules, cujas pinturas estudava compulsivamente.

Assim, daquele país que lhe parecia “econômico de realidade”, eis que surge uma prova viva e inconteste, colocando em cheque tudo que sabia. Afinal de contas, para ele, japoneses eram seres idílicos, flutuando em quimonos antigos na brancura frágil que envolvia suas infusões.

O que fazer agora com seu “doutorado”, defendido com louvor nas transparências de louças, habitadas por japoneses com duas dimensões?

E o caos mental se estabelece. O que era para ser uma conversa agradável, uma oportunidade de se saber mais sobre aquele país, transformou-se em um golpe que ameaçava derrocar, talvez em definitivo, a “sapiência” do protagonista, tomada de empréstimo das chávenas.

Agarrando-se ao seu Japão tradicional e idealizado, o narrador opta por evadir de qualquer questão acerca do assunto. Afinal de contas, perguntar para quê?

(Dr. Boro) era capaz de atirar para dentro da minha ignorância uma quantidade de coisas falsas. Quem sabe se ele se atreveria a insinuar pela conversa afora, como coisa normalmente acreditável, que no Japão há problemas econômicos, dificuldades de vida para várias pessoas, cidades com lojas reais, campos com colheitas como as nossas (…) Por isso não tratamos do Japão.

Não obstante suas ilusões acerca do “delicioso povo”, que nem sequer, até então, dava-se ao trabalho de existir, o estudioso das porcelanas nipônicas agora precisava enfrentar um grave dilema. Como compatibilizar suas estimadas inverdades com a evidente existência do Dr. Boro?

No passado, o narrador já tinha ignorado notícias da imprensa, que lhe violentavam com fatos de um Japão concreto. Agora era diferente, não estamos falando de letras gélidas num papel de jornal. O professor era de carne e osso. À revelia, o personagem segue determinado a ignorar qualquer prova cabal que contrariava suas convicções, criando sua própria teoria da conspiração:

Não é para ser enganado pela primeira realidade que se me atira aos olhos que eu tenho gasto minutos distensos na contemplação científica e estéril de bules e chávenas japonesas. O mais provável, a respeito deste Boro, é que nascesse em Lisboa e se chame José. Do Japão, ele? Nunca. (…) Não é para nada que através de esforços consecutivos, a nossa época ganhou o duro nome de científica. Japoneses com vida real, com três dimensões, com uma pátria com paisagens e cores autênticas! Lérias para entretenimento do povo, mas que a quem estudou não enganam…

E assim, o “pesquisador” de serviços de chá, este tipo ideal do acometido pelo efeito Dunning-Kruger2, alimenta sua superioridade ilusória e tenta passar incólume ao Dr. Boro, devotando-se aos esforços inescrupulosos de “esquecer” aquele professor japonês.

Cerca de um século depois, esta crônica de Pessoa é o retrato do negacionismo que vivemos hoje. Pelo que se vê, o fenômeno é antigo, não nasceu com as redes sociais e com o termo fake news. Troquemos a xícara de chá pelo WhatsApp e o personagem atesta toda a sua atemporalidade.

Para nós, acadêmicos, é extremamente desgastante lidar com isto. E se tem uma coisa que o documentário A Terra Plana3 nos ensinou é que nem sempre adianta apresentar argumentos, porque as razões para o anti-intelectualismo e para o negacionismo vão bem mais além da falta de conhecimento. Envolve, por exemplo, ausência de ferramentas intelectuais para processá-lo corretamente.

A solução para o problema, de fato, é coletiva e de longo prazo: educação de qualidade, desde a infância até o ensino superior. Uma educação reflexiva e crítica, que capacite verdadeiramente o estudante a aprender a aprender, a pensar com método científico e com ética. Como docente, procuro plantar esta semente todos os dias, mas num país tão precário e desigual quanto o Brasil, a árvore cresce com dificuldades.

Por fim, existem os que lucram com as fake news, bem como aqueles para os quais a desinformação é conveniente. Estes são os mais perigosos e também os mais irritantes.

O fato é que o negacionismo está aí e, para o bem da nossa qualidade de vida, precisamos descobrir um modo de lidar com ele individualmente, não só na sala de aula, mas também na festa de família. Nesta crônica, o desespero do “cientista de bule” ao exercitar a amnésia nos dá algumas pistas.

Pelo que parece, naquela história, Dr. Boro não se envolveu em grandes embates, nem teve sequer oportunidade de advogar acerca da existência de um Japão ordinário. Ele apenas existiu, prosseguiu sendo como sempre foi. Apesar das suas tolas convicções, o narrador agora tem a inatingível missão de apagar da memória Dr. Boro.

Nós temos que ser como este professor: concretos, presentes, difíceis de esquecer. Com o nosso exemplo e com a nossa vida, implantar a alternativa aos enredos fantasiosos, a novidade, o conhecimento científico, a sabedoria, estes espinhos irremovíveis na carne dos alienados. Mostrar que a realidade pode ser levianamente negada, mas jamais esquecida. E ter esperança de que grandes rompimentos, não raro, originam-se em pequenas rachaduras.

Em um tempo no qual a métrica que importa parece ser sempre a dos resultados, das estatísticas, das respostas assertivas, subestimamos a importância de semear incertezas. Elas não aparecem nos gráficos e nas pesquisas de opinião, mas estão lá, subjacentes, atormentando diariamente a consciência dos anestesiados.

Mesmo aqueles que prosseguem em sua alienação voluntária, defendendo conspirações ao largo dos fatos, precisarão engolir a nossa existência. E em seu chá, em vão adoçado pela arrogância, amargar a presença daquela que é companheira dos intelectuais e inimiga dos ignorantes por opção: a senhora dúvida.

Notas

1 – Livro Contos Completos – Fernando Pessoa

Fernando Pessoa é considerado o maior poeta modernista português. Os trechos citados neste texto foram extraídos da Crônica decorativa I, publicada no livro Contos Completos, de Fernando Pessoa (Editora Carambaia, 2018, pg. 27). Falo mais sobre a Carambaia nas notas do texto A felicidade e os livros em tempos de isolamento social.

2 – Efeito Dunning-Kruger

Este efeito leva o nome de dois pesquisadores – Justin Kruger e David Dunning – que publicaram sobre o assunto quando eram pesquisadores da Universidade de Cornell.

Trata-se de uma descoberta psicológica de como nossa mente se comporta diante do conhecimento. Após uma série de experimentos, os pesquisadores concluíram que pessoas que possuem um conhecimento inicial acerca de um assunto tendem a achar que sabem muito mais sobre aquilo do que realmente sabem.

Por exemplo, pessoas que leram um único livro sobre um tema, assistiram um único documentário, fizeram uma disciplina sobre um pensador, etc. De posse desses conhecimentos básicos, a pessoa alimenta uma superioridade ilusória. E é difícil sair dela, porque os conhecimentos necessários para avaliar a pouca profundidade do que se sabe é justamente o que falta às pessoas que estão sob este efeito.

Por outro lado, pessoas que sabem demais, com frequência, fazem o oposto e subestimam o domínio que possuem de um assunto, justamente por terem noção de como aquele tema é complexo e como sempre há mais para se saber. Essas pessoas sofrem da síndrome de impostor.

É comum que todos nós, em algum momento da vida, sejamos acometidos tanto pelo efeito Dunning-Kruger quanto pela síndrome do impostor. Por isso, precisamos ter sempre uma abordagem crítica acerca daquilo que realmente sabemos.

3 – A Terra é Plana

O documentário A Terra é Plana faz uma reflexão, através de casos reais de pessoas terraplanistas e de entrevistas com especialistas, sobre os fenômenos sociais e as causas por trás da desinformação que vivemos hoje, em especial amplificada pelas redes sociais. Já assisti duas vezes e recomendo bastante, principalmente para professores e acadêmicos.

Agradecimentos: Alberto Nogueira Veiga e Paulo Rocha, pelos preciosos comentários e sugestões.

Imagens: Bule e xícaras de vidro (Teejay, Pexels), Xícara com pinturas japonesas (Chezbeate, Pixabay). Fotografia do livro de Contos de Fernando Pessoa por Ana Cecília Rocha Veiga.

Foto de Ana sorrindo. Ana é uma mulher branca de meia-idade, com grandes olhos castanhos e cabelos ondulados com mechas louras, na altura dos ombros.

Ana Cecília é professora na UFMG, Brasil. Pesquisa gestão inclusiva e tecnologias da informação e comunicação para museus, bibliotecas e arquivos. Mora em Belo Horizonte com o esposo Alberto e seus dois filhos. Ama ler, desenhar, caminhar e viajar.

 

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