No século X, o viajante árabe Ahmad Ibn Fadlān integrou uma expedição que saiu de Bagdá, hoje no Iraque, e chegou até Bolgar, cidade atualmente russa. Ao longo de um ano, percorreu quatro mil quilômetros e colecionou histórias inusitadas sobre os muitos povos que encontrou nesta longa jornada, como os vikings assentados às margens do rio Volga.
No relato de suas aventuras, publicado no livro Viagem ao Volga — Relato do enviado de um califa ao rei dos eslavos, não passam incólumes os trajes, costumes, práticas culturais e, ainda, os espetáculos da natureza. A fauna e a flora, o frio alucinante, os rios, o alvorecer vermelho.
A aurora boreal emulava uma guerra nas nuvens. O viajante enxergou nela pessoas, cavalos e armas, numa batalha atroz entre dois exércitos celestiais. Segundo o folclore árabe, eram jinn (gênios) que sempre riscavam o firmamento na chegada da noite.
Sabemos que os diários dos antigos viajantes não podem ser considerados retratos precisos da realidade, cabendo sempre espaço para o revisionismo da memória, a literatura de ficção ou as interpretações do autor. Não obstante, ainda que de soslaio, o olhar de Ibn Fadlān pautou, por séculos, a narrativa imagética do mundo acerca das culturas nórdicas.
Dentre os tantos casos curiosos, chamou-me a atenção as descrições sobre mortes e assassinatos observados entre certos eslavos. Segundo o viajante, para os tais, as pessoas que sabem muitas coisas, tendo a mente célere e esperta, “servirão bem ao Senhor”, devendo ser enviadas imediatamente a Ele! São, portanto, enforcadas em árvores. Seus corpos permanecem ali até definharem.
Ibn Fadlān registra, como exemplo, a história de um homem habilidoso e inteligente que se colocou a serviço do intérprete do rei. O homem decidiu acompanhar um grupo em uma empreitada comercial. O rei tentou dissuadi-lo dessa temerária decisão, mas acabou assentindo. Já no barco, o grupo logo percebeu que se tratava de alguém que “serviria bem ao Senhor”. Então, ao passarem por um bosque no caminho, o destino daquele homem inteligente encontrou seu fim em uma árvore qualquer.
Ler hoje este diário pode parecer uma viagem anacrônica a um tempo longínquo de vandalismo, barbárie e terror. Um tempo no qual se premiava conhecimento e astúcia com a pena de morte. Contudo, não sejamos apressados ao condenarmos somente povos antigos.
Mil anos se passaram, mas seguem firmes e fortes correntes e sentimentos como o anti-intelectualismo, anti-academicismo, fundamentalismo religioso, teorias da conspiração e fake news.
Questionamentos sem embasamento da ciência não são novidades. Manipulação da informação por aqueles que detém o poder idem. Nem sempre sabedoria, erudição e ética andam juntas. Na Era da Internet, porém, estas coisas tomam dimensões inimagináveis, comprometendo a sobrevivência das democracias e do próprio planeta Terra.
As redes sociais, em especial, estão consumindo o tempo das pessoas, moldando nossas vidas e nossos cérebros, competindo com livros e outras formas de aquisição de competências intelectuais complexas e formação de pensamento crítico, dentre outros impactos preocupantes. Tudo isto contribui para a propagação de equívocos e ignorâncias, dificultando a navegação dos indivíduos em um mundo que exige cada vez mais, no dia a dia, a decodificação de conhecimentos difíceis de serem adquiridos.
Na contemporaneidade, portanto, a Internet apenas tornou os métodos de se aniquilar o “inimigo” mais abrangentes, cortando o “mal” pela raiz. No lugar de se matar os inteligentes e habilidosos, as redes sociais trabalham incessantemente para prevenir que simplesmente venham a existir.

Notas
Livro Viagem ao Volga – Relato do enviado de um califa ao rei dos eslavos. Ahmad Ibn Fadlān. Editora Carambaia, 2019. Tradução e apresentação de Pedro Martins Criado.
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Agradecimentos: Alberto Nogueira Veiga, Paulo Rocha e todos os que me deram seu precioso feedback, obrigada pelos comentários e sugestões.
Imagens: Aurora Boreal (Tobias Bjørkli, Pexels), Livros da Carambaia (Ana Cecília Rocha Veiga).