Reflexões sobre os desafios de se traduzir o português para a língua inglesa: 1º aniversário do blog em inglês

Categorias: Cultura, Vida Acadêmica
Tags: Brasil, decolonial, e-learning, inglês, português, tradução

Na virada de 2021 para 2022, no primeiro minuto do novo ano, a versão em inglês do meu blog entrou no ar!

O blog traduzido fez parte de um projeto pessoal de capacitação, cujo objetivo consistia na minha imersão no aprendizado da língua inglesa ao longo deste ano. O projeto era dividido em fases, compartilhadas numa página Web com meus estudantes da UFMG, que poderiam acompanhar pelo link o meu progresso.

Print do website do meu projeto de estudo de inglês. Clique na imagem para acessar o projeto completo.

A ideia ao mostrar o projeto em sala de aula era estimular o nosso estudo de inglês, gerando pressão social positiva. E pelo menos para mim deu certo!

Participei de 100 aulas de conversação em inglês este ano. A maioria particular, mas muitas em grupo também, porque era intelectualmente estimulante. Professores e alunos espalhados pelo globo, unidos pela Internet. Foram muitas situações inusitadas e divertidas. Com certeza a experiência de estudar inglês on-line merece seu próprio post.

Em termos de conteúdo, ouvi centenas de horas de áudios, vídeos, palestras e cursos em inglês. Versavam sobre temas que quero escrever no blog e também sobre minhas pesquisas acerca da gestão inclusiva e acessibilidade digital.

Estudei dezenas de letras de músicas e fiquei chocada com o que muitas delas queriam dizer. Ainda que já entendesse bastante coisa, foi apenas quando li a letra que descobri, por exemplo, que In the air tonight é uma música sobre vingança. Vingança??? Ouvia sempre, toda feliz, que a noite se aproximava, compartilhando com Phil Collins a suposta ansiedade por encontrar a pessoa amada. Ledo engano… Deveria ter prestado mais atenção na letra.

Li 14 livros na língua inglesa e estou agora no 15º, contando apenas os livros não relacionados ao meu trabalho. Porque a minha vida acadêmica este ano, no que diz respeito às leituras e pesquisas, foi praticamente toda em inglês.

Participei nos últimos tempos de algumas atividades, workshops e reuniões extremamente produtivas, que envolveram professores, pesquisadores e/ou profissionais de algumas das instituições mais relevantes do mundo na minha área de atuação.

As novidades decorrentes desses contatos internacionais serão publicadas assim que seus frutos concretos amadurecerem. Por aqui, somos adeptos à produtividade tropical, não ao “produtivismo”. Tudo é feito sem pressa, priorizando a excelência e a qualidade de vida, tema principal desta plataforma!

Numa dessas reuniões este ano, havia cerca de 20 participantes e o sol estava em todas as alturas no céu, começando por mim no Brasil, cerca de 6 horas da manhã, e terminando com uma pessoa na Austrália, à noite. A amálgama que nos unia ali era o inglês e, até onde sei, era a única participante de língua portuguesa e a única nativa da América Latina.

Ao longo do último ano, tive oportunidade de assistir e até de conversar “olho no olho”, digo, “tela na tela”, com pensadores de referência e profissionais que admiro profundamente e que ainda não tive (e talvez nunca tenha) o privilégio de conhecer ao vivo.

Tudo isso só foi possível por causa do inglês. E, claro, também da Web, que me permitiu atravessar o planeta em um único clique. Como faz agora o leitor, caso não esteja na mesma cidade ou país que eu.

Confesso que comecei apreensiva este projeto de internacionalização da plataforma, pois os textos são traduzidos por mim mesma, com a ajuda de ferramentas digitais de tradução, tais como Google Translator, LanguageTool, Grammarly, Scrivener e dicionários.

Depois vou detalhar aqui este passo a passo. Já adianto que é preciso deixar o perfeccionismo de lado: toda vez que releio meus textos traduzidos encontro falhas. E tudo bem.

Outra apreensão nasceu da minha própria resistência com a língua inglesa, advinda dos estudos decoloniais, tão presentes no contexto acadêmico, cultural e museal do qual faço parte. Não sabia que essa resistência morava em mim até começar a traduzir o meu blog e me sentir estranha, como se estivesse “capitulando para o colonizador”.

Contudo, o inglês hoje não é mais a língua de uma nação específica, é uma ferramenta da humanidade. E ainda bem que é uma língua fácil de aprender, imagina se fosse o alemão? Desculpem meus ancestrais germânicos, até cogitei no passado saber mais sobre essa língua, mas alemão é dureza!

Também sou descendente de portugueses e indígenas brasileiros. Devo ter outras descendências na minha árvore genealógica que ainda não sei. Só tenho traçadas as gerações recentes, mas um dia ainda vou investigar essa árvore mais a fundo, de curiosidade.

O Brasil abriga grandes comunidades de imigrantes e descendentes de alemães, italianos, espanhóis, japoneses, poloneses, sírios, libaneses e por aí vai. Daí quando estou viajando no exterior e ouço “nossa, você não parece brasileira”, logo penso…“essa pessoa sabe muito pouco sobre o Brasil”. Isso aqui é uma salada de frutas, não existe uma “aparência típica brasileira”. Se você estiver viajando pelo nosso país, só vai ter certeza se uma pessoa é turista ou não quando conversar com ela.1

Outra coisa curiosa é quando alguns norte-americanos ou alguns europeus nos chamam de “não-ocidentais”. O Brasil é um país considerado exótico e, por consequência, nós brasileiros também somos vistos assim.

Contudo, até mesmo por conta do colonialismo, do genocídio indígena e da escravidão africana, páginas trágicas da nossa história, houve uma intensa europeização dos nossos costumes.

Além de colônia portuguesa, também tivemos focos temporários de colonização francesa e holandesa, assim como invasões pontuais inglesas. Tentativas frustradas de tomar a colônia brasileira, suprimidas em algum momento por Portugal.

O Brasil se tornou independente do império português em 1822 e deixou de ser monarquia para se tornar uma república presidencialista em 1889.

O nosso país também recebeu inúmeros judeus de diversas nacionalidades, grande parte do Velho Continente, sendo que a cidade de Recife fundou a mais antiga sinagoga das Américas, de 1637: Kahal Zur Israel (“Rocha de Israel”, em hebraico).

Mais recentemente, aí no âmbito da conquista através do soft power, sofremos forte influência cultural dos EUA, algumas positivas, outras nem tanto.

Por tudo isso, pensar que alguém não me considera “ocidental” não me incomoda em nada, mas me soa bastante engraçado! O Brasil não é um só país, parece mais um continente. E esse caldeirão tem um pouco de tudo mesmo, uma miríade de sabores com um tempero vernacular. Mas bastante dessa mistura é composta por aquilo que entendemos por Ocidente.

Para se ter uma ideia deste caldeirão, minha mãe conta que a língua falada na casa da avó dela era o alemão, o português ficava para conversar com os de fora. Isso acontece ainda hoje em alguns bairros, como o Liberdade, comunidade japonesa em São Paulo. E também em algumas cidades do Sul do país, nas quais línguas europeias ainda concorrem com o português até mesmo nas lojas e praças.

Igreja Metodista e ruas enfeitadas para o Natal em Gramado, cidade do Sul do Brasil fortemente influenciada pela arquitetura e cultura alemãs.

Permanecem vivas no Brasil, especialmente na região da floresta Amazônica, 274 línguas indígenas. Cheguei a estudar o tupi-guarani2 por algum tempo. Vários nomes de lugares e palavras incorporadas no cotidiano do português brasileiro têm origem indígena. Oportunamente conto um pouquinho minha história com o estudo de outros idiomas além da língua inglesa.

De todas as coisas legais que vieram dessa imersão no inglês, uma das minhas preferidas foi a tradução do blog. Isso me permitiu treinar a escrita e ampliar o alcance dos meus textos. Provavelmente a maioria das pessoas que me lê nasceu no Brasil, mesmo estando no exterior. Não obstante, foi bem legal ver, ao longo do ano, o mapa das estatísticas de acesso ir colorindo cada vez mais, à medida que usuários localizados em outros países visitavam as páginas.

Às vezes, estava no painel das estatísticas quando entrava alguém de um país distante, numa cidade cujo nome nunca ouvi falar. Então, buscava imagens daquele lugar na Web e ficava imaginando quem seria aquela pessoa ali. Ao mesmo tempo, tão longe e tão perto.

Meu post em inglês mais lido neste primeiro ano de aniversário do blog foi o Time Management System: Time Tracking, Time Blocking, Activity Tagging, and Results from The Analysis. Um dos meus textos preferidos, aliás.

Tudo isso me serviu de grande estímulo e certamente meu projeto de capacitação na língua inglesa virou um programa e continuará indefinidamente, assim como o meu blog em inglês.

Tradução é um processo demorado, difícil, mas enriquecedor. Na verdade, traduzir é reescrever, é um exercício criativo. Em uma das entrevistas que ouvi, um tradutor de livros literários, cujo nome me foge agora, disse que traduzir é recontar uma história, portanto, é uma produção autoral. Concordo totalmente!

Por exemplo, gosto de fazer trocadilhos em português. Usar uma palavra cujo som lembra outra, talvez mais provocativa ou risqué, que não teria coragem de escrever, mas que coloco ali para brincar com o subconsciente do leitor. Na tradução, esses jogos esbarram nas minhas limitações linguísticas ou perdem força por falta de uma solução equivalente. O texto, então, precisa ser reinventado. 

Outro recurso que adoro lançar mão é recorrer à flexão dos gêneros. Na língua portuguesa, o sol é masculino e a lua é feminina. O fogo e o trovão, masculinos. A água e a chuva, femininas. O poder, o controle e o domínio, masculinas. A justiça, a esperança e a liberdade, femininas. Todas essas inflexões se perdem na tradução, junto com informações nas entrelinhas que fazem parte da narrativa do meu texto em português, essa língua romântica e complexa que tanto amo.

Sim, esta peculiaridade das línguas latinas esbarra no sexismo, pois investe as palavras dos estereótipos de gênero e coloca o plural sempre no masculino, quando se refere a homens e mulheres. Contudo, tal característica também abraça a poesia!

Livro de contos sobre Nova York de O. Henry, editora Carambaia.

O. Henry, no seu conto Nasce um Nova-iorquino3, explica que os poetas antigos nos ensinam que a cidade é feminina. Cidade, com efeito, na língua portuguesa, é um substantivo feminino.

Ao evocar esse fato, O. Henry quer instigar no leitor toda carga intelectual e emocional associada à feminilidade, agora um atributo que emprestou à cidade. Não preciso explicar isso em um texto em português. Basta escrever cidade e esse construto imagético invadirá inconscientemente aquele que me lê, ainda mais se reforçado por outras estratégias literárias.

Essas diferenças entre o inglês e o português tornaram-se para mim um delicioso desafio. O fato é que me descobri apaixonada pelo inglês e pela tradução. Que venham mais e mais posts traduzidos neste ano que se inicia!

Se a língua inglesa, ao se tornar hegemônica, carrega consigo um legado cultural que se dissemina pelo mundo, o contrário também se verifica. Através do inglês posso compartilhar a minha brasilidade. O blog, portanto, é este pequeno barquinho brasileiro que viaja longe nas ondas virtuais do nosso imenso ciberespaço…

Mapa com as estatísticas deste blog no Google Analytics em dezembro de 2022, sendo que os países em azul tiveram usuários acessando o website desde a sua fundação, em 2021.

Notas

1 – No vídeo First Impressions of Brazil, do canal Divert Living, essa pluralidade do povo brasileiro é mostrada de forma bem divertida. O vídeo é bem interessante, aliás, gostei da seleção de aspectos culturais que eles escolheram. O “meu” Rio de Janeiro é bem diferente do mostrado no vídeo, até porque o casal se concentrou nos tipos de lazer mais famosos e turísticos da cidade maravilhosa. Um dia ainda apresentarei aqui no blog outras atividades culturais que o Rio tem, como as bibliotecas, museus, teatros, jardim botânico, etc. De qualquer modo, vale a pena ver o vídeo se você está querendo visitar o Brasil, bem interessante.

2 – O tronco tupi-guarani é uma importante família linguística indígena que engloba várias línguas do Brasil, incluindo ainda países vizinhos que possuem territórios ocupados pela floresta Amazônica.

3 – William Sydney Porter sob o pseudônimo de O. Henry, livro Contos da editora Carambaia, São Paulo, 2016. Organização e tradução de Jayme da Costa Pinto.

Agradecimentos: Alberto Nogueira Veiga, Paulo Rocha e todos os que me deram seu precioso feedback, obrigada pelos comentários e sugestões.

Imagens: Post-its (Polina Tankilevitch, Pexels), Print do website gestão do projeto (plugin Panorama), Gramado (Ana Cecília Rocha Veiga), Livro de contos de O. Henry (Ana Cecília Rocha Veiga), Mapa das Estatísticas do Blog (Google Analytics).

Foto de Ana sorrindo. Ana é uma mulher branca de meia-idade, com grandes olhos castanhos e cabelos ondulados com mechas louras, na altura dos ombros.

Ana Cecília é professora na UFMG, Brasil. Pesquisa gestão inclusiva e tecnologias da informação e comunicação para museus, bibliotecas e arquivos. Mora em Belo Horizonte com o esposo Alberto e seus dois filhos. Ama ler, desenhar, caminhar e viajar.

 

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