Tudo começou com o Fyre Festival…
Fyre Festival é um documentário do Netflix que conta a história de um festival internacional de música pop que prometia ser uma espécie de “Woodstock luxuoso”. O festival terminou em um retumbante fracasso, principalmente por conta das decisões temerárias do organizador do evento, Billy McFarland.
Não só o evento não aconteceu, como toda a zona dos bastidores foi inteiramente documentada pelas câmeras, do início ao fim. Devo ter assistido a esse documentário mais de dez vezes, é inacreditável. Faço uma sessão comentada sobre ele nas minhas aulas de gestão.
Não entrava na minha cabeça como empresas e profissionais com estrada no ramo, megabandas internacionais de música, agências de publicidade, top models e a imprensa internacional embarcaram naquela furada.
Qualquer pessoa que entende minimamente de planejamento sabe que aquele festival não tinha como ser concretizado num espaço tão curto de tempo. Como ninguém percebeu isto antes? Como Billy conseguiu convencer tantas pessoas experientes do contrário?
Aí lançaram The Tinder Swindler (O Golpista do Tinder). E a minha cabeça deu um nó de vez.
Este documentário mostra a história de um vigarista que levava uma vida nababesca, extraindo dinheiro de pessoas em vários países. A maioria mulheres que seduziu no Tinder.
No caso das mulheres, ele se dizia um bilionário negociante de diamantes. Porém, como estaria sob “ameaça de morte”, o vigarista alegava que movimentar suas contas de banco revelaria a sua localização para seus “poderosos inimigos”.
Então, ele pedia dinheiro vivo. Dinheiro este fornecido pelas vítimas até mesmo às custas de vultuosos empréstimos. Uma das mulheres se endividou em 250 mil dólares por ele!
Não estou querendo de modo algum culpar as vítimas de nenhum dos dois documentários. E apesar de não concordar com os critérios destas pessoas para a escolha de um bom partido ou parceiro de negócios, não há como negar que elas são inteligentes e se apresentam como profissionais experientes.
Como, então, essas vítimas, principalmente no caso do documentário do Tinder, não se fizeram perguntas básicas? Por exemplo…
Se o tal bilionário não pode acessar a conta de banco, por que ele não pede dinheiro para o pai ricaço dele? Ou para os amigos milionários? Se ele negocia diamantes, por que não vende alguns e consegue dinheiro vivo?
Ele é bilionário e não tem nenhum colchão, parede falsa, cofre, cueca, sei lá. Não tem nada onde ele esconde alguns maços de notas para emergências? Até a gente tem uns trocadinhos em algum lugar do bolso, para a hora em que o cartão de crédito e o PIX falham.
Nada disso tinha lógica alguma e não conseguia parar de assistir o The Tinder Swindler de novo, e de novo e outra vez.
Um dia meu esposo chegou em casa e eu lá, na milésima sessão desse cinema interminável. Então Beto disse: “Ana, você tem consciência de que o Tinder Swindler é o seu novo Fyre Festival?”
Sim, eu tinha. Só que não conseguia parar de assistir. Precisava compreender o que estava acontecendo ali. Eu queria explicações que fizessem algum sentido para mim.
Um insight assustador: Por que este tema está atraindo a minha atenção?
Então, comecei a pesquisar na Web textos e vídeos com análises deste documentário e do perfil psicológico do Golpista do Tinder. Foi quando os resultados das buscas na Internet me apresentaram, pela primeira vez fora do contexto mitológico grego, a palavra “narcisismo”.
Consumindo conteúdos de narcisismo, em um determinado vídeo, uma “chavinha” virou na minha cabeça.
Vou explicar melhor. Até para ser justa com as pessoas que já passaram em minha vida, já que abordarei aqui no blog a partir de hoje todas as formas de abuso narcisístico. Vamos começar pelo que eu não me identifiquei.
Quais abusos em relacionamentos tóxicos eu NÃO vivenciei?
Até onde eu me lembre…
Nunca sofri golpes financeiros, emprestei dinheiro, fiz dívidas para custear gastos de ninguém, seja na esfera profissional, pessoal ou íntima.
Já deixei de ganhar dinheiro, por exemplo, porque tive que abrir mão de oportunidades e projetos para fugir de pessoas ou situações tóxicas. É uma forma indireta de perder dinheiro. Mas nunca gastei quantias que já possuía na minha conta.
Na verdade, é bem comum no meio acadêmico, intelectual e cultural, que as pessoas mais abusivas sejam poderosas, ricas e notórias. Então, o que eles querem de suas vítimas geralmente é outro tipo de suprimento, não dinheiro.
Namorei muito pouco na vida e nunca fui traída em nenhum relacionamento. Corrigindo: não que eu saiba. Nunca precisei terminar um relacionamento por conta de traição. É algo que não aceitaria, sem segundas chances.
Monogamia é difícil para todo mundo. Se eu dou conta de segurar a onda, quem está comigo precisa dar. Não tenho o menor interesse em relacionamentos abertos. E não toleraria o desrespeito à minha confiança que representa uma traição.
Também não consigo me visualizar convivendo em um ambiente (doméstico, profissional, familiar etc.) onde haja violência física. E sempre tive dificuldades de compreender por que muitas pessoas se submetem a amigos e chefes que jogam objetos na direção delas. Ou parceiras e parceiros que as xingam, espancam ou violam sexualmente.
Antes, confesso que no fundo achava muitas vítimas coniventes. Ao permanecerem com seus abusadores, elas estariam se voluntariando para o abuso.
Agora, depois de tudo que li sobre psicopatia, narcisismo e relacionamentos tóxicos, entendo que a coisa não é tão simples assim não. Compreendo perfeitamente por que muitas vítimas não conseguem se libertar, principalmente no caso da violência doméstica.
Além dos homens serem mais fortes fisicamente do que as mulheres, pelo menos na esmagadora maioria dos casos, bem como vivermos em sociedades permeadas por valores patriarcais, há todo um processo de coerção psicológica envolvido nesta trama. Não é de um dia para o outro, o abuso psicológico é intenso e gradual.
O abuso físico ou verbal geralmente só vem quando a mulher (ou a pessoa mais frágil daquela relação) está totalmente dominada emocionalmente e presa por laços difíceis de se romper: casamento, filhos, dívidas, dependência financeira, sociedades empresariais, trauma bond e por aí vai. Mas voltando ao meu caso…
Por fim, não tenho a menor tolerância e paciência com pessoas que têm ataques de fúria, ficam xingando palavras de baixo calão ou frases depreciativas, do tipo: “você não presta”, “você é um lixo”, “eu que mando aqui”, “cala a boca e faz o que eu estou mandando”, “você sabe com quem você está falando?”, etc.
Claro, já conheci pessoas abusivas. Elas estão em todos os lugares. Já presenciei alguns “barracos” na vida, infelizmente. Mas mesmo antes de saber sobre narcisismo, a minha tolerância com esse tipo de comportamento geralmente é zero. Minha tendência imediata é me afastar o máximo que eu puder, o mais rápido que eu puder, deste tipo de gente grossa.
Não precisa nem ser no nível de agressividade que descrevi acima. Basta demonstrar falta de bons valores. Basta me tratar com arrogância, desamor, rispidez e desrespeito para eu romper um relacionamento.
Em muitos casos, eu já praticava Contato Zero e Pedra Cinza sem nem mesmo saber do que se tratava. (Não sabe o que é isso? Acompanhe a série sobre narcisismo para descobrir mais sobre o Tesauro Narc.)
Então, por que eu me identifiquei tanto com o tema narcisismo e psicopatia?
Vivendo na Narcisolândia dominada por narcisistas do tipo cavalheiro ou dama
Tanto no Fyre Festival, quanto no Golpista do Tinder, repare que a arma destes abusadores e golpistas não era a força física, a violência, a coerção ostensiva. Essas vítimas foram bem-tratadas e seduzidas durante quase todo o tempo do abuso nos documentários!
E é assim que muitos abusadores conseguem tudo o que querem dos outros, não necessariamente através da arrogância explícita ou da agressividade. Ainda mais no meio acadêmico e progressista, que é a bolha que eu mais frequento. Ainda mais no Brasil!
O brasileiro é um povo considerado caloroso e cordato. E Minas Gerais, o estado onde estou, tem a fama de ser o mais doce do país.
O fato é que narcisistas brasileiros não fazem simplesmente love bombing, fazem love bombing atômico ou love bombing tropical, como preferir. Em resumo, love bombing turbinado. Teremos um texto sobre isto nesta série.
No caso dos relacionamentos amorosos, com o agravante de que tudo acontece num cenário de natureza paradisíaca! Isso de jantar em restaurante chique, vinho sofisticado, joias, flores, chocolates, viagem romântica etc. Isso aí é o básico dos básicos. Muitos brasileiros vão bem mais além em suas táticas de conquistas. Narcisistas ou não.
E o que descobri nesse processo, é que mesmo relacionamentos saudáveis podem ser prejudicados com excesso de romantismo prematuro. As pessoas ficam tão mergulhadas no “mundo da fantasia”, que deixam de identificar com mais lucidez suas incompatibilidades.
Agora imagina se um deles for narcisista. O outro vai acabar ignorando totalmente os sinais de alerta que costumam escapar aqui e ali.
Brasileiros empatas (pessoas que têm compaixão e empatia pelo próximo), por sua vez, não gostam simplesmente de agradar: eles cobrem suas paixões com tempestades de amor e adoração. E nem sempre isso tem a ver com baixa autoestima ou codependência. Faz parte da nossa cultura expressar os sentimentos com mais facilidade.
A diferença entre a tempestade de amor e o love bombing atômico, é que a vítima faz o primeiro porque quer agradar a pessoa amada. E o narcisista faz o segundo, porque quer manipular a sua vítima e torná-la emocionalmente dependente. Para em seguida, abandonar o período dourado do love bombing e entrar na fase do abuso.
Essa dinâmica ganha contornos ainda mais intensos sob o nosso sol tropical. É muito comum que brasileiros tragam para todos os seus relacionamentos muita paixão, ação e emoção. Sejam estes relacionamentos de qualquer natureza. Profissional, familiar, social ou íntimo. Presencial ou virtual. Um amor do tipo eros, philia, storge ou agape.
Narcisistas ficam obcecados com este suprimento “Classe A”, com essa nossa capacidade de colocar as pessoas que amamos e admiramos em um pedestal. Quando tem narcisistas envolvidos, características culturais do meu país não ajudam. Pelo contrário!
O excesso de devoção e paixão tornam este jogo ainda mais viciante, perigoso e difícil de abandonar. Tanto para a vítima, quanto para o narcisista. E quando a vítima está prestes a escapar, o narcisista faz algo extremamente generoso que a surpreende e a mantém naquela montanha russa.
Se uma vítima é traída, xingada com palavras de baixo calão ou se sofre uma agressão verbal ou física, fica óbvio identificar o absurdo da coisa. É mais instintivo irar-se contra quem fez isso e canalizar este sentimento para sair do ciclo abusivo. Não estou dizendo que seja fácil escapar, de jeito nenhum! Mas pelo menos é mais evidente que a relação é abusiva.
Se alguém virasse para mim e dissesse: “eu te detesto”, “você não presta” ou “você é incompetente”. Bom, isso não seria uma bandeira vermelha. Seria uma bandeira pirata estapeando a minha cara. Dificilmente eu permaneceria em qualquer tipo de relacionamento com essa pessoa.
Mas e se a tática for depreciar sutilmente as coisas que gostamos e acreditamos, dar sermões passivo-agressivo disfarçados de crítica construtiva, não reconhecer ou elogiar adequadamente quando somos bem-sucedidos, sabotar nosso trabalho nos bastidores, fazer campanhas difamatórias nas nossas costas, ampliar a importância dos nossos erros, minar nossa autoconfiança, destruir nossa coragem de começar novos projetos?
Mas e quando o comportamento abusivo ou a “punição” do narcisista for o jogo do quente e frio, o sumiço, não responder mensagens ou e-mails, nos dar um “tratamentos de silêncio” quando não falamos exatamente o que ele quer ouvir, mandar indiretas numa reunião ou publicá-las nas redes sociais, fazer promessas e arranjar sempre uma desculpa para não cumprir, não aceitar um “não” como resposta, pregar uma coisa e fazer outra, não ter capacidade de autocrítica ou de receber feedbacks?
Nestes casos, fica bem mais difícil perceber que a dinâmica que está em curso é extremamente tóxica. Mas este é o modus operandi que mais funciona com pessoas do meu perfil. Porque as bandeiras vermelhas são mais veladas e amenizadas com carisma, inteligência, migalhas de atenção, desculpas esfarrapadas e gaslighting.
É assim que narcisistas agem geralmente no meu contexto. Não pela arrogância ostensiva ou pelo exercício de controle e dominação agressiva. Mas com charme, manipulação calculada e sofisticada estratégia.
Narcisistas e pessoas tóxicas imperam em todos os meios que frequento, como o acadêmico, mercado cultural e intelectual, universo dos influenciadores e blogueiros, lideranças sociais e religiosas, profissionais da gestão e da produtividade, área médica, para citar alguns dos principais.
E não sou eu quem está dizendo isso, são as estatísticas. A discussão sobre os problemas de saúde mental na universidade, por exemplo, está nas principais revistas nacionais e internacionais do campo acadêmico há anos.
E o mais contraditório é que muitas vezes quem está promovendo esta discussão sobre produtividade tóxica é justamente quem mais se beneficia com este tipo de produtivismo. É quem perpetua os sistemas de avaliação acadêmicos narcisísticos, calcados em parâmetros tão perversos e injustos que beiram a psicopatia. No futuro as pessoas rirão de nós por adotarmos hoje sistemas tão falhos de qualificação da nossa produção.
Mas vida dupla e hipocrisia são marcas registradas de pessoas narcisistas. É frequente no meio intelectual o descolamento entre teoria e prática. Entre discurso e atitude. Entre as aparências e o que acontece nos bastidores.
Além disto, as pesquisas mostram que narcisistas e psicopatas estão super-representados em diversas profissões e posições que envolvem vida pública, poder e conhecimento.
Enfim, depois de ler mais de vinte livros sobre narcisismo, psicopatia e psicologia do trabalho, constatei que vivo numa Narcisolândia Tropical. Ou melhor, uma Narcisolândia Internacional. Narcisismo é uma pandemia anunciada que assola cada vez mais o mundo todo. E isto está colocando em risco, inclusive, a sobrevivência do planeta e da humanidade. Além de prejudicar nossa felicidade e qualidade de vida.
Os Jogos Mentais dos Narcisistas
Nesta Narcisolância em que vivo, então, qual é a arma de controle e poder? Como o abuso narcisístico ocorre? Através de sofisticados jogos mentais. E nós jogamos esse jogo sem nem saber que estamos jogando. E mergulhamos em confusão e dissonância cognitiva por conta disso.
As imagens que ilustram esta série sobre narcisismo terão como tema o xadrez. Porque é a metáfora perfeita para um relacionamento com narcisistas. Para eles, a vida é um jogo. Cada movimento que eles fazem é com o objetivo de te seduzir, te controlar e, por fim, te derrubar quando você “perder a graça”. Na cabeça de um narcisista, ele é o rei (ou rainha). E você e eu, meros peões em seu tabuleiro.
Entender sobre o assunto me fez constatar que todos nós, inclusive esta que vos escreve, normalizamos este tipo de jogo. Banalizamos a cultura narcisística contemporânea. E não nos demos conta do quão terrível isso é para a sociedade, para as empresas e instituições e, também, para a nossa produtividade.
Os estragos emocionais deste tipo de banalização do comportamento narcisístico podem ser graves, além de outras formas até irreversíveis de prejuízos sérios. Em todas as esferas da vida.
Porque narcisistas e psicopatas são alpinistas sociais e usarão os outros como objetos para atingirem seus objetivos, sem nenhuma compaixão ou remorso. E como são extremamente focados em seus objetivos, não raro atingem o sucesso que tanto almejam.
Daí concluirmos que, em grande parte, líderes emocionalmente prejudicados construíram o nosso Zeitgeist. E nós não podemos abraçá-lo de maneira acrítica.
Mas o que adianta uma pessoa ter sucesso, inteligência, aparência, charme, dinheiro, poder, status, fama, conhecimento, títulos acadêmicos, prêmios, habilidades, cultura, bom gosto ou qualquer outra forma de conquista, se essa pessoa não tem empatia, ética, coerência, equilíbrio emocional e soft skills? Se vive uma vida sem amor e sem felicidade, apenas de aparências?
E pior ainda: usa todo o poder, todas as qualidades (e privilégios) que possui, não para construir um mundo melhor para todos, não para lutar por causas do bem comum. Mas para perpetuar desigualdades e para conquistar o seu império pessoal às custas dos demais.
O rei está nu; e sua coroa é de latão, não de ouro. Constatar isso é importante, para sairmos logo desses relacionamentos abusivos e ambientes tóxicos, sempre que possível. Ou, no mínimo, lidarmos com esse tipo de gente com mais estratégia e menos emoção.
E, uma vez libertos emocionalmente, trabalharmos em nós mesmos o narcisismo residual: os traumas, valores distorcidos, memórias ruins e comportamentos tóxicos que adquirimos nesses convívios.
Seja na nossa vida pessoal, social ou profissional, no mínimo esse tipo de “narc cavalheiro ou dama” rouba duas das coisas mais preciosas do nosso tesouro: amor e tempo.
Não temos como recuperar o tempo de volta. Mas podemos reconquistar o nosso coração e dá-lo, a partir de agora, somente para quem realmente merece, reconhece o nosso valor e sabe honrar e retribuir o nosso amor.
Prepare o café ou o chá… É sobre tudo isso que conversaremos nesta longa série sobre narcisismo, psicopatia e comportamentos tóxicos. Espero que gostem de ler tanto quanto eu adorei escrevê-la!