Toda a nossa lógica trabalhista vigente foi estruturada a partir do capitalismo e isto inclui a ideia socialmente construída de que devemos ser economicamente produtivos por pelo menos oito horas por dia. Contudo, existem inúmeras maneiras de se viver uma vida produtiva e de se contribuir para a sociedade que, não necessariamente, resultam em remuneração.
Algumas das descobertas científicas mais importantes para o mundo foram feitas em paralelo aos negócios ou empregos principais. Em alguns casos, as pessoas permaneceram neles simplesmente porque precisavam “pagar as contas”.1 Por tudo isto, dentre outras coisas, sou favorável à renda universal básica2.
Entretanto, o capitalismo está posto. Creio que não viveremos o suficiente para assistir o seu fim. Até mesmo porque, infelizmente, ainda não temos uma alternativa viável. Precisamos, portanto, nos organizar para sobreviver nessas condições, nesta eterna zona de guerra que se chama mercado. Se você, como eu, tem o privilégio de trabalhar em algo que faria até de graça, além da “mão invisível” precisa lidar também com o seu capitão-do-mato interior, para o qual hora extra é ópio.
Por fim, vivemos em uma sociedade tão complexa, com demandas tão exigentes, que se organizar deixou de ser uma questão de ambições e passou a ser uma questão de sobrevivência, de proteção da sua sanidade mental. Da educação dos filhos, passando pelos relacionamentos pessoais até a carreira profissional, tudo pode (e deve) ser gerido com base em sistemas de planejamento.
As questões e tarefas relacionadas às pessoas importantes da minha vida estão listadas em projetos no software de gestão Todoist3. Há quem diga que isto é o capitalismo infiltrado nas esferas pessoais do ser humano, impingindo sua chibata e sua demanda por eficiência até nas áreas mais intangíveis, como os sentimentos. Bom, admiro os que conseguem ser felizes e realizados nestes dias tenebrosos confiando somente na sua memória, boa vontade e instinto. Não integro este grupo: preciso de toda a ajuda possível.
Portanto, não… produtividade, gestão, desenvolvimento pessoal, organização não são coisas só de capitalistas e “socialistas de iPhone”4. São uma exigência para quem quer contribuir para o mundo e garantir o seu sustento, mas também ter uma vida pessoal rica, uma rotina mais saudável e equilibrada.
Creio que as pessoas organizadas sempre estarão um passo à frente, tanto em resultados, quanto em qualidade de vida, independentemente de qual modelo econômico esteja vigente. Negar a demanda por capacitação em planejamento, voltado para os projetos de alto nível, mas também para os imperativos e decisões ordinárias do cotidiano, parece-me um grave equívoco.
São verdadeiros presentes para o mercado os intelectuais utópicos, que acreditam poder conduzir suas vidas ignorando-o. O capitalismo agradece toda vez que um de seus críticos sucumbe ao burnout. Afinal de contas, gente preocupada com dívidas, prazos estourados, problemas crônicos de saúde, papelada acumulada por todo lado ou relacionamentos destruídos não tem tempo e fôlego para liderar mudanças.
Notas
1. Um exemplo notório é o caso de Albert Einstein, que após se formar passou dois anos sem trabalho na área acadêmica, temendo pela falta da próxima refeição. Finalmente conseguiu um emprego numa repartição pública, o Escritório de Patentes de Berna, onde trabalhou por sete anos. Neste período, ele já começou a desenvolver as suas reflexões e teorias. Leia mais no artigo Quando Albert não era um Einstein.
Outro exemplo interessante de contribuição paralela ao trabalho principal é Naguib Mahfuz (1911-2006), o único escritor de língua árabe agraciado com o Nobel da Literatura (1988). Mahfuz entrou para o funcionalismo público, em 1938, e ali permaneceu até se aposentar, em 1971, como consta em sua biografia ao final do livro O Sussurro das Estrelas, edição da Carambaia. Sua produção literária gerou dezenas de romances e roteiros originais para cinema, além de centenas de contos. Ao todo, foram quase 50 livros publicados!
2. Renda Universal Básica é uma proposta na qual o Estado custearia uma renda mínima para todas as pessoas, indistintamente, sem condicionantes. Em resumo, trabalhando ou não, todo mundo teria um salário básico. Isto garantiria que não houvesse pobreza extrema, reduzindo, ainda, situações de trabalho abusivas e exploratórias. Também liberaria as pessoas do receio de buscar sua verdadeira vocação, contribuindo para um mundo mais criativo e melhor para todos. Parece impossível, mas não é. Teremos oportunidade de conversar mais sobre isto neste blog.
3. Todoist é o principal software de gestão no qual faço o meu planejamento hoje em dia. O aplicativo permite organizar as listas de tarefas em projetos. Nele faço o gerenciamento tanto da minha vida profissional, quanto pessoal. O aplicativo possui um plano gratuito, com algumas limitações de recursos. Atualmente eu contrato o plano Pro. Como já pontuei na missão deste blog, os eventuais produtos sugeridos aqui são escolhidos por mérito e/ou adequação, não havendo, portanto, qualquer tipo de recebimento de patrocínio ou benefícios para sua indicação. Visite o website do Todoist clicando aqui.
4. Socialista de iPhone é uma expressão pejorativa que se popularizou nas redes sociais brasileiras, referindo-se a pessoas de esquerda que possuem um bom poder aquisitivo. Neste raciocínio raso, seria uma contradição defender princípios de justiça social, distribuição de renda e afins, ao mesmo tempo em que se usufrui de bens de consumo caros de grandes empresas capitalistas, como celulares iPhone. Ou seja, só poderia lutar por bem-estar social quem faz voto de pobreza e quem vive em um outro planeta, onde as empresas que fornecem os produtos e serviços não fazem parte do capitalismo. Acho que é dispensável explicar mais aos leitores do meu blog, um público inteligente, como o argumento é falacioso.
Agradecimentos: Alberto Nogueira Veiga e Paulo Rocha, pelos preciosos comentários e sugestões.
Imagens: Fauxels (Pexels) e Lukas (Pexels).
Última revisão e atualização: Julho de 2021.