Esta semana tive a honra de ministrar uma palestra on-line para os alunos da disciplina Viajando pela Natureza da universidade inglesa de Warwick, a convite da querida professora Elizabeth Chant.

Neste seminário, abordei de forma direta e honesta as belezas representadas nas estampas culturais Liebig e Eucalol e nos diários dos antigos viajantes dos séculos passados, mas também as questões difíceis que suscitam.

São alguns dos tópicos abordados neste post: decolonização, imigração, miscigenação racial brasileira, turismo exploratório, descaracterização do nosso patrimônio imaterial no turismo etnográfico e no turismo psicodélico (Ayahuasca e outras drogas tropicais), o elitismo do turismo cultural, o vício em perigo por trás do turismo de aventura, a visão eurocêntrica e a romantização da natureza tropical nas estampas culturais, a inteligência artificial no processo de catalogação e análise destas estampas no contexto museal, dentre outros assuntos instigantes.

Leia abaixo uma “versão blog” do seminário, com diversas referências disponibilizadas nas notas no final. Baixe, ainda, os slides da palestra para acompanhar as menções visuais do texto. Boa viagem, queridos leitores e leitoras!

Clique aqui para baixar os slides da palestra

Meu Lugar de Fala

Onde ficam essas casinhas barrocas? Seria uma vila portuguesa? Nós estamos vendo imagens de cidades históricas no estado de Minas Gerais, o meu estado, onde fica a capital Belo Horizonte, minha cidade, e a UFMG, minha universidade. O que faz todo sentido, afinal de contas, o Brasil foi colonizado prioritariamente por portugueses. Digo prioritariamente, porque tivemos em alguns locais específicos períodos curtos de colonização francesa e, também, holandesa. Falando nisto…

Onde fica esta sinagoga? Fica em Israel? Na verdade, fica na cidade de Recife. A região de Recife foi colonizada pelos holandeses por um período curto no século XVII. E foi um período de relativa liberdade religiosa na região. E este museu e esta sinagoga ficam onde foi construída a primeira sinagoga das Américas, no início do século XVII.

Onde fica este castelo mourisco centenário? No Marrocos? Egito? Espanha? Na verdade, é no Rio de Janeiro. É um centro brasileiro muito importante de pesquisa chamado Fiocruz.

O Brasil possui uma grande comunidade de descendentes árabes, em especial, sírio-libaneses. Na verdade, a comunidade libanesa brasileira é maior do que a população atual do Líbano.

Onde fica esta arquitetura alemã Fachwerk? Esta é a cidade de Gramado, no Sul do Brasil, uma cidade com forte influência da imigração alemã. Cerca de cinco milhões de brasileiros são descendentes de alemães.

E onde fica esta igreja? A Igreja de Achiropita. Seria numa cidade da Itália? Não, esta igreja fica no bairro do Bixiga, que é um bairro italiano na cidade de São Paulo. Cerca de 15% da população brasileira, 30 milhões de pessoas, têm descendência italiana.

Por fim, essas lanternas, vocês já adivinharam, não ficam no Japão. Elas ficam no bairro da Liberdade, também em São Paulo. O Brasil possui a maior comunidade do mundo de japoneses fora do Japão. Este bairro foi escolhido pelo renomado guia britânico Lonely Planet com um dos melhores destinos do mundo para serem explorados ano que vem.

Acho que deu para ter uma ideia de onde eu quero chegar…

O Brasil é um país que recebeu milhões de imigrantes do mundo inteiro. Geneticistas brasileiros da USP publicaram na revista Science os primeiros resultados de uma grande pesquisa sobre a genética do brasileiro, que eu apresento rapidamente para vocês.

Se considerarmos a linhagem materna brasileira registrada no DNA das mitocôndrias –parte das células herdadas exclusivamente da mãe – o brasileiro carrega 42% de ancestralidade africana e 35% indígena. Milhões de africanos foram traficados como escravos para o Brasil nos séculos em que fomos colônia de Portugal. Igualmente, os indígenas sofreram dominação cultural, escravização e, os que resistiram, genocídio.

Já quando olhamos o cromossomo Y, que é exclusivamente paterno, a situação se inverte: o brasileiro é 71% europeu. Este dado é uma cicatriz histórica na nossa genética, que revela não só o domínio colonial, mas também o patriarcado do nosso passado.

Segundo os geneticistas desse projeto, o Brasil é provavelmente o povo mais miscigenado do mundo. O Brasil é um caldeirão cultural! E isso fica evidente não só pela nossa genética, mas também pela nossa cultura e pela minha própria árvore genealógica.

Talvez a pessoa que melhor represente esta Torre de Babel seja a minha avó materna, que tinha um avô alemão, um avô português e um irmão que se casou com uma pessoa cuja família era de italianos. Do lado paterno, segundo história oral familiar, temos além de descendência europeia, também indígena.

O meu sangue é uma festa de nações e eu acho isso incrível. Talvez por causa da consciência da colonização e, também, dessa mistura cultural brasileira, seja mais fácil para mim não ser uma pessoa nacionalista. Aliás, eu preciso confessar que eu considero o patriotismo uma forma provinciana de narcisismo coletivo.

Eu sempre me senti uma cidadã do mundo. O planeta é um só, a raça é humana. E não existe Plano B, precisamos cuidar do nosso planeta. Sustentabilidade não é “modinha”, é emergência catastrófica de dimensões planetárias. A crise climática já está atingindo a gente aqui no Brasil e vocês aí na Europa.

Mas porque tudo isso é relevante para esta palestra? E o que a minha avó está fazendo aqui?

Foi da minha avó que eu herdei a coleção de aproximadamente 800 estampas culturais. E foi dos meus avós paternos que eu herdei o desejo de viajar pelo mundo, porque eles viajavam bastante. Viajar é meu hobby preferido. E ler sobre viagens também.

E vocês precisam entender que eu sou uma imigrante digital, eu nasci na era pré Internet. Quando eu estava na faculdade, não existia Google, nem redes sociais e nem smartphone!

É claro que esses cartões não tiveram na minha vida o impacto que eles tiveram na minha avó e nas pessoas no começo do século XIX e XX, quando eles foram publicados. Na minha infância e juventude já tinha televisão. Livros eram acessíveis de se comprar e de se ler em bibliotecas. Então, as estampas culturais não eram minha fonte principal de informações sobre viagens. Mas eles tiveram sim um impacto grande no meu imaginário dos lugares ditos “exóticos”.

Aliás, um pequeno parêntese, eu não ligo de as pessoas chamarem o Brasil de “exótico” ou me chamarem de “exótica”, apesar do nome politicamente correto ser não-ocidental. Aparentemente, eu sou uma pessoa “não-ocidental”.

O Brasil não é apenas um país, está mais para um continente. E neste caldeirão cultural tem um pouco de tudo, uma miríade de sabores com um tempero vernacular. Mas muito do que compõe este caldeirão é formado por aquilo que conhecemos como cultura ocidental. E o fato de viajar bastante contribui para essa visão cosmopolita também, para além das minhas tantas descendências.

Portanto, esse projeto é triplamente pessoal para mim. Na verdade, em mais de vinte anos de carreira acadêmica, este é o meu projeto mais pessoal, porque está envolvendo a coleção de estampas culturais da minha avó, o meu hobby predileto, que é viajar, e minha leitura predileta de lazer, que são os diários de viagem.

Aliás, eu estou quebrando uma promessa com esse projeto. Eu amo museus, e sou professora do curso de Museologia na UFMG. Portanto, eu segui a minha paixão. E isso tem vantagens e desvantagens. Quando a gente trabalha com aquilo que a gente ama a gente vê o outro lado da nossa paixão, para além da diversão. A gente vê os problemas e o lado sombrio.

E é isto que vai acontecer aqui e vai ficar bem claro nesta palestra. Como nós vamos ver, este projeto vai celebrar o lado artístico, histórico e belo das estampas culturais, mas também inevitavelmente o seu lado complicado.

Eu havia prometido para mim mesma que nunca transformaria minha paixão pelas viagens e pelos diários dos antigos viajantes em um projeto acadêmico. Mas na vida a gente paga a língua, né? Então, vamos ao projeto.

Projeto Webmuseu

O Projeto Webmuseu – Gestão Inclusiva do Patrimônio Cultural é um projeto de extensão da UFMG coordenado por mim, que tem conexão com meus projetos de pesquisa e, também, com as minhas disciplinas no curso de Museologia da UFMG. É um projeto grande, com várias frentes, então, eu vou me concentrar somente na parte das estampas culturais nessa palestra.

Nosso objetivo é desenvolver um processo de catalogação, gestão de coleções de museus e difusão de acervos on-line pertencente à comunidade acadêmica com o apoio da Inteligência Artificial. E para isso a gente precisava de uma coleção para desenvolver e testar esse processo.

Eu decidi utilizar a coleção de estampas culturais da minha avó por diversos motivos, mas principalmente porque ela está comigo e eu não precisaria ficar me deslocando para um museu, pedindo autorização, cumprindo burocracias, usando EPIs de conservação e por aí vai.

Apesar de ser uma coleção particular, é uma coleção musealizável. Vários museus importantes no Brasil preservam estas estampas, como o Museu Histórico Nacional do Rio e o Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo. E ao redor do mundo também, como o British Museum, que possui mais de 15 mil trade-cards no seu catálogo on-line.

Aliás, eu até gostaria no futuro de doar essa minha coleção para um museu quando finalizarmos o projeto, mas aí vou ter que negociar com meus filhos. Eles adoram essa coleção. Eu também adoro, mas entendo que em um museu mais pesquisadores e visitantes poderiam ter acesso a esses belíssimos cartões.

Apesar de existirem várias estampas culturais (trading cards), nós vamos focar principalmente em dois específicos. Os cartões Liebig, que foram publicados na Europa nos séculos XIX e XX como brindes de carne enlatada produzida na América do Sul. E os cartões Eucalol, que foram publicados no Rio de Janeiro, entre as décadas de 1930 e 1960. Eles vinham numa caixa de sabonete da empresa Perfumaria Myrta.

Essa empresa pertencia a um imigrante judeu alemão, o que já mostra a influência europeia na origem desses cartões brasileiros. Não só porque eles foram inspirados nos cartões Liebig, mas porque os donos da empresa que os publicaram aqui no Brasil não eram brasileiros.

O objetivo primário do projeto é focado na gestão de museus e gestão de acervos, com auxílio do uso das Tecnologias da Informação e Comunicação e da Inteligência Artificial. A coleção está sendo desenvolvida no Tainacan, e também será disponibilizada no Internet Archive em alta resolução.

Contudo, eu não vou entrar nessa parte da pesquisa aqui, pois acredito que terão muito pouco interesse em conhecer protocolos de gestão de acervos para museus, como o Spectrum do Reino Unido, nossa principal referência nesse projeto.

Porém, um objetivo secundário da pesquisa, que é necessário inclusive neste projeto, porque nós precisamos preencher as fichas de catalogação para testar o processo, é a produção de conteúdo e análises sobre os objetos, no caso, as estampas culturais. Para isso nós pretendemos convidar profissionais e pesquisadores de diversas áreas para nos ajudar a compreender e analisar esses cartões.

Biólogos, historiadores, sociólogos, arqueólogos, especialistas em turismo e natureza. Enfim, pessoas de referência em áreas diversas, como a querida professora de vocês, Liz. Será uma honra tê-la nos ajudando a compreender estes cartões.

E quais tipos de análises as estampas culturais permitem?

Estas estampas permitem uma série de análises envolvendo: patrimônio cultural, história, etnografia, museologia, conservação de obras efêmeras, arte, estética, semiótica, conceitos de autoria e plágio, marketing, comunicação, informação, heráldica, música, moda, design, tipografia, turismo, meio ambiente, botânica, paleontologia, arqueologia, medicina, estudos decoloniais, estudos de gênero, nutrição etc. Enfim, é um material que subsidia uma quantidade enorme de estudos e análises.

O projeto está só começando, então, nós estamos apenas esquentando os motores nessas análises, utilizando os conhecimentos que nós mesmos temos e realizando estudos exploratórios com a IA a esse respeito.

Quais dessas análises nós vamos fazer em profundidade ao longo do caminho? Ainda não sabemos, isto vai depender daquilo que formos encontrando e dos andamentos da pesquisa. Quais frentes nos parecerão mais promissoras à medida que digitalizamos e catalogamos as estampas culturais.

Mas para que vocês tenham uma ideia de como este material primário é uma rica fonte de estudo, veremos alguns exemplos de possíveis análises e campos de investigação. Eu escolhi falar sobre quatro aspectos do turismo que podemos chamar informalmente de quatro Ds: Distinção, Decolonização, Drogas e Perigo (Danger).

Curiosos? Ah, eu espero que sim! Começando com Distinção: Turismo Cultural.

Turismo Cultural: Distinção

Este cartão à esquerda é um cartão Liebig alemão sobre Bach, pertencente a uma série sobre compositores de música clássica. É considerado um pouco raro e é lindíssimo, todo em detalhes dourados. A digitalização não faz jus a ele ao vivo.

Apesar de não ser um cartão de natureza ou de viagem, eu acho bacana começar este tema mostrando este cartão para vocês, porque ele ilustra perfeitamente este primeiro conceito que pretendemos explorar no projeto: o conceito de Distinção.

Na nossa coleção on-line, temos um campo inicial que é voltado para atrair a atenção do visitante para aquela ficha catalográfica. Uma espécie de “isca” para abrir o apetite para um conteúdo mais denso, acadêmico, reflexivo e profundo, que vem depois. E nesse “teaser”, eu escrevi sobre este cartão:

Você se lembra do filme O Sorriso de Mona Lisa, ambientado nos anos de 1950? Nele, Julia Roberts interpreta uma professora de artes em uma universidade tradicionalista, que prepara alunas brilhantes para serem donas de casa cultas e sofisticadas. Pois é, esta estampa de Bach segue exatamente esta mesma vibe! A propaganda poderia muito bem dizer: “Cozinhe para sua família uma fabulosa sopa ouvindo a Paixão Segundo São Mateus de Bach na sua imaginação. Afinal de contas, mulheres inteligentes sabem que o extrato de carne Liebig é tão fácil de cozinhar quanto a música clássica é saborosa de ouvir. Com Liebig você compõe uma obra-prima para o jantar!” Divirta-se com as curiosidades deste cartão colecionável distribuído pela empresa Liebig, que mistura o sagrado e o profano, o erudito e o mundano em uma astuta estratégia de marketing – tudo para “dar um grau” no ego das cozinheiras do início do século XX!

Um pensador que pode nos ajudar neste processo de compreensão dos códigos implícitos em estampas culturais como estas é Pierre Bourdieu. O conceito de Habitus de Bourdieu nos ajuda a entender a formação do “gosto”. Para Bourdieu, o Habitus das pessoas é feito de um acúmulo de diversos capitais adquiridos do contexto. Capital econômico, cultural, social, linguístico, político etc.

E é a partir da compreensão desta matriz social das classes dominantes e da aquisição de seus recursos que as pessoas podem jogar o jogo cultural para tentar ascender para as altas classes sociais. Neste sentido, as estampas culturais são mais uma peça neste quebra cabeça formativo. Elas são estruturadas dentro das regras do jogo da elite. E são estruturantes, também, na consolidação da continuidade dos seus valores. É uma roda que se retroalimenta.

No caso das estampas de viagem, nós precisamos entender que os cartões Liebig e Eucalol foram publicados numa época em que viajar era realmente um luxo. Ainda é, de certo modo, mas definitivamente é algo imensamente mais acessível do que nos séculos passados. Portanto, ver ao vivo aquilo que estes cartões representavam tinha grande valor simbólico.

Não havia ainda o mercado trilionário do turismo de massa. E as estampas culturais certamente deram a sua parcela de contribuição para incentivá-lo.

Então, concretizar o desejo de conhecer esses lugares ali representados era uma ambição que só poderia ser conquistada pela elite. Mas cuja aspiração também era compartilhada por uma classe média que consumia esses cartões e que encontrava em sabonetes ou enlatados de carne um “alimento para o corpo e para o espírito” (MORCILLO, 2018).

Um parêntese que gostaria de fazer para finalizar o tópico da Distinção é que as estampas brasileiras Eucalol também possuem uma série sobre compositores de música clássica. E que todos os compositores retratados nas ilustrações são compositores europeus, com exceção do Carlos Gomes.

E uma coisa que eu notei, já que neste projeto vamos precisar fornecer informações culturais e históricas sobre os cartões na coleção on-line, é que eu não sabia praticamente nada sobre Carlos Gomes.

Por que eu sei tanto sobre Bach, que é um dos meus compositores preferidos, aliás, mas quase nada sobre Carlos Gomes, que é um dos compositores brasileiros mais famosos e reconhecidos internacionalmente?

Aí eu me deparei com uma realidade ainda mais embaraçosa… Eu gosto muito de música clássica, um “gosto” que eu herdei do meu contexto protestante e familiar, para ratificar involuntariamente o conceito de Habitus de Bourdieu. E, pelo menos em nível consciente, acredito que gosto de música clássica por motivos nobres e espirituais, não pelas “razões erradas” (como status), para citar a reflexão presenteada a nós por Gombrich em sua introdução à História da Arte.

Mas o fato é que eu praticamente não ouvia nada do Brasil. Então esse projeto me fez querer escutar mais música clássica brasileira e a frequentar mais concertos com repertórios de compositores do meu país.

Não se trata de substituir a música clássica europeia pela brasileira, mas de incluir a brasileira no meu leque de opções. E foi o que eu fiz e estou adorando. Eu até coloquei para vocês nas referências do post uma playlist com algumas das minhas composições preferidas. Tem muita coisa incrível ali!

Ou seja, decolonizar o nosso olhar não é mudar o ponto de vista, é ampliar a perspectiva de visão. Usar uma lente que nos permita enxergar de modo mais amplo e inclusivo. Considerando principalmente as riquezas culturais que nós temos à nossa volta e que, por ignorância, tantas vezes dispensamos.

Sabe o que é pior do que uma pessoa europeia que tenha uma visão reificada e eurocêntrica do mundo? Uma professora brasileira que descobre através de uma estampa cultural que ela precisa decolonizar o seu ouvido!

O que nos leva ao próximo D…

Viagens dos Exploradores: Estudos Decoloniais

O próximo D que quero abordar com vocês é a questão decolonial. Apesar das viagens exploratórias não poderem ser classificadas propriamente como “turismo”, deram sua parcela de contribuição para o turismo exploratório que viria a seguir.

As estampas Eucalol abordam as viagens dos primeiros exploradores europeus dos séculos XV e XVI no Brasil e nas Américas. Também reproduzem gravuras dos antigos viajantes – curiosos ou cientistas – que estiveram aqui principalmente no século XIX.

Esta estampa Eucalol, intitulada Descoberta do Brasil, possui o seguinte texto no verso:

Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro, a 22 de abril de 1500. Representa a figura os selvagens estupefatos em frente desses semideuses, que surgiam dos confins de além-mar.” (gramática atualizada)

Eu não preciso explicar para vocês o que há de errado com este texto, porque é tudo muito evidente à esta altura do campeonato. Mas talvez algo que seja novidade aqui, já que vocês provavelmente não estão familiarizados com história da América do Sul, é que esta e outras estampas Eucalol possuem várias incorreções históricas. Então, identificá-las neste projeto é uma contribuição interessante para as áreas de educação, história, antropologia, sociologia etc.

Segundos pesquisas históricas mais recentes, a primeira expedição europeia a explorar o Brasil não foi a do português Pedro Álvares Cabral, em abril de 1500, mas sim a do espanhol Vicente Pinzón, que chegou antes de Cabral por aqui, no rio Amazonas, em janeiro de 1500.

Então, como fica fácil constatar, este cartão é ultrapassado de inúmeras maneiras. Mas temos comprovação em pesquisas prévias sobre as estampas Eucalol, de que elas eram utilizados como material didático em salas de aula do século XX!

Um educador e filósofo brasileiro que estava à frente do seu tempo nesta questão da decolonialidade, e que discutiu a fundo na sua obra o questionamento das estruturas sociais e educacionais dominantes, é Paulo Freire. Pedagogia do Oprimido, a contribuição mais reconhecida de Paulo Freire, é o único livro brasileiro que figura entre os cem mais pedidos pelas universidades de língua inglesa.

Segundo a pesquisa que levantou este dado, foram analisados mais de um milhão de programas de estudos nas universidades do Reino Unido, EUA, Austrália e Nova Zelândia. Os pesquisadores, então, filtraram os livros mais solicitados nas ementas das disciplinas. Se considerarmos somente os livros sobre Educação, Pedagogia do Oprimido figura em segundo lugar como a obra mais pedida nas universidades desses países, atrás somente de Teaching for Quality Learning in University: What the Student Does, de John Biggs.

Paulo Freire considerava a educação uma força de libertação, empoderamento, mudança de condições de vida e desenvolvimento de pensamento crítico. Portanto, os métodos didáticos propostos por Paulo Freire são dialéticos, interativos e questionadores do status quo.

Paulo Freire nos deixou em 1997, ano em que entrei para a universidade como estudante. Se estivesse vivo hoje, eu adoraria conversar com ele sobre a aplicação de sua pedagogia libertadora nos museus. E adoraria também ouvir o que ele acha do fato de que estampas culturais como esta foram utilizadas por professoras nas escolas.

Infelizmente, Paulo Freire não está mais entre nós. Mas tivemos uma conversa incrível sobre tudo isto na minha imaginação. Como a conversa foi muito longa, vamos ao próximo tópico… Turismo Etnocêntrico, ou, o terceiro D: Drogas.

Turismo Etnocêntrico: Drogas

Gabriel Garcia Marques, um escritor colombiano laureado com o prêmio Nobel, disse que o diário de Cristóvão Colombo sobre sua “descoberta” da América era “o primeiro livro de realismo mágico.” E acho que é uma descrição muito adequada para este incrível diário.

No dia 9 de janeiro de 1493, Colombo escreve que avistou sereias. E ele nem as achou tão bonitas assim quanto dizem, elas pareciam ter o rosto de homens.

Existem muitas explicações possíveis para o fato dele ter achado que viu sereias.

Ele poderia sofrer de psicose ou de algum transtorno de personalidade como narcisismo ou psicopatia. Narcisistas se sentem superiores e esperam viver experiências extraordinárias. Neste sentido, sua condição de saúde mental poderia tê-lo feito acreditar que viu sereias. Ou mesmo mentir deliberadamente que as viu, para fazer o seu diário mais interessante.

Indução psicológica, porque era uma lenda muito comum em diversos povos. O Brasil mesmo tem a lenda da Iara. A Iara seria uma linda sereia que seduz os homens. A Iara se originou da mistura entre as histórias dos colonizadores portuguesas com certas lendas indígenas.

E os antigos navegadores tinham conhecimento dessas lendas ao redor do mundo e poderiam se sentir sugestionados. Sabemos que Colombo tinha conhecimento e interesse profundo em mapas e diários de viagem.

Estresse, fatiga corporal, deficiência vitamínica e de outros nutrientes eram problemas graves nestas viagens. Estes homens nestes navios estavam sob enorme privação e pressão o tempo todo, o que pode provocar alterações sensoriais e de interpretação daquilo que vemos.

Desconhecimento de espécies de animais que podem se assemelhar à distância a uma sereia, como o peixe-boi, que existia na região onde ele estava passando naquele momento. Se for mesmo isso, fica explicada a impressão que ele teve de que as sereias não eram femininas.

Pode ser inclusive um combo de vários dos motivos que listei. Mas um outro motivo que se aplica não somente ao diário de Colombo, mas a diversos trechos estranhos de outros diários dos antigos viajantes, é o uso de substâncias psicoativas, que é um nome chique para drogas alucinógenas. Ou seja, uma substância que altera o nosso estado de consciência e que não é necessária para a nossa sobrevivência.

O diário de Colombo, segundo a nota da edição que eu tenho, foi inclusive o primeiro a descrever o tabaco, por exemplo. A Associação entre doenças psicóticas e o tabaco são bem documentadas pela ciência. O uso diário de tabaco está associado a um risco aumentado de psicose e a uma idade mais precoce de início da doença psicótica.

Estes navegadores com certeza ingeriam álcool nessas viagens, isso é muito bem documentado também. E a ingestão exagerada de álcool, como todos nós sabemos provavelmente, pode gerar distorções cognitivas.

Mas em que medida os antigos viajantes também não consumiam outros tipos de drogas, como ópio e drogas tropicais? E aí a gente entra na questão do turismo etnográfico, mais especialmente no turismo psicodélico.

As florestas tropicais possuem uma quantidade significativa de plantas com efeitos alucinógenos, que são utilizadas há milhares de anos e até hoje por povos originários sulamericanos em rituais religiosos. Alguns destes rituais se tornaram sincréticos com a religião cristã na contemporaneidade, o que contribui para a sua maior aceitação social.

Provavelmente, a mais famosa dessas drogas na América do Sul é a Ayahuasca, que significa algo como “videira das almas”. Trata-se de um chá composto por duas plantas amazônicas que induz uma espécie de estado de transe, um estado de sonho. Algumas pessoas têm viagens visionárias e outras experiências introspectivas. Estas sensações podem ser positivas ou não.

Certamente estas substâncias psicodélicas foram experimentadas por muitos desses exploradores. E até hoje o são. Na verdade, há toda uma indústria de turismo em torno dessas experiências místicas provocadas por drogas tropicais aqui no Brasil e demais países da Amazônia.

Como eu falei no começo desta palestra que este era um projeto muito pessoal, acho importante fazer alguns esclarecimentos. Eu não tenho nenhuma restrição moral com o uso recreativo de drogas, afinal de contas, eu faço uso eventual de álcool. É um uso moderado, mas o álcool é uma droga. Uma droga perigosa, aliás, banalizada pela cultura contemporânea, mas não vamos entrar nisto aqui.

Contudo, fora o álcool e tabaco, que eu provei de curiosidade, mas eu não fumo, eu nunca experimentei nenhuma outra droga na vida além dessas duas. Já tomei medicamentos opioides, com prescrição e monitoramento médico, mas nunca de forma recreativa. Certamente, nunca provei e nem provaria drogas amazônicas. E um dos principais motivos é que eu acho que eu ficaria imediatamente viciada em algumas delas. Vício não é algo químico somente, mas também psicológico. E eu me conheço, eu adoraria estas drogas.

Por exemplo, uma amiga minha da juventude era muito imersa no meio artístico. E numa ocasião, numa festa deste meio, ela ingeriu cogumelos alucinógenos. E essa amiga me disse na época que ela estava na frente de uma cachoeira maravilhosa e que ela começou a enxergar cores que ela sequer sabia que existiam.

Um parêntese aqui sobre as cores. Um artista turco-americano – Refik Anadol – em colaboração com a comunidade indígena Yawanawa, da floresta amazônica brasileira, criou uma coleção de arte digital em NFTs. E essas imagens me lembraram a experiência da minha amiga. Aliás, a parceria com este artista injetou milhões, muito dinheiro, uma fortuna, em eventos indígenas relacionados à Ayahuasca.

Voltando ao caso… Eu me recordo de ter pensado: “Nossa, eu queria ver cores inexistentes também!” Mas aí ela continuou e disse que o pai dela, em contrapartida, teve uma viagem terrível. Ele começou a alucinar que estava sendo perseguido por monstros. E os amigos precisaram contê-lo fisicamente para ele não se machucar ou não machucar os demais.

E esse é o ponto que eu quero chegar… As pessoas não compreendem muito bem o risco dessas drogas. Os turistas vão para o meio da floresta, para uma comunidade tradicional brasileira, ou para uma tribo indígena, e ingerem essas substâncias psicoativas sem se darem conta de seus possíveis impactos emocionais e consequências para a saúde, que não estão plenamente estudadas. Existem benefícios comprovados pela ciência, que está inclusive estudando maneiras de desenvolver medicamentos com a Ayahuasca. Mas existem possíveis malefícios graves para algumas pessoas predispostas a estes efeitos colaterais.

E penso que tanto os turistas, quanto os indígenas, merecem saber os resultados da ciência acerca dos benefícios e malefícios destas drogas, antes de decidir acerca do seu uso.

Mesmo para quem faz um uso religioso, como os povos originários, a pessoa pode acessar a ciência para tomar suas decisões pessoais de fé. Assim como eu faço, como nós fazemos, na cultura ocidental. Indígenas são humanos como nós, inteligentes como nós, e merecem ser mais bem informados sobre as pesquisas acerca das drogas tropicais, porque alguns deles podem sim ser geneticamente predispostos a problemas graves provocados por elas. Mais do que isto: indígenas deveriam fazer parte das equipes nas universidades como pesquisadores, estudando a Ayahuasca e outras substâncias tradicionais.

Outro aspecto importante, que tem forte conexão com o tema do curso de vocês, é essa questão da turistificação do uso recreativo de drogas, o chamado turismo psicodélico ou, quando envolve rituais, turismo xamânico. Uma reportagem do Le Monde Diplomatique diz:

Distinguem-se três tipos de turista. Os ‘místicos’ vão para a Amazônia para se divertir e ter sua cota de visões de onça ou de anaconda. Os turistas medicinais, por sua vez, chegam a esses centros para se curar de toda espécie de doenças, tanto físicas (câncer, esclerose múltipla, aids etc.) quanto psíquicas. Esse grupo comporta doentes em fase terminal, para quem a Amazônia representa a última chance. Mas o que constitui o fundo de comércio dos centros é a cura do estresse, verdadeira doença do Ocidente, segundo os xamãs.”

Os indígenas dizem que os ocidentais europeus, têm a riqueza; e os povos originários têm a sabedoria. O que é uma maneira de afirmar que, na verdade, é o Sul que cura o Norte, de acordo com a reportagem do Le Monde.

Este tipo de turismo está terminando muitas vezes por descaracterizar os próprios rituais e o consumo das plantas amazônicas pelos povos originários. Para eles, estas drogas têm um papel cosmológico. Eles não as chamam de alucinógenas, mas de enteógenas: um elemento para “despertar o divino dentro de si”.

O fato é que muita gente está lucrando com este artigo de luxo “exótico”. E é possível tomar o chá da Ayahuasca em galerias de arte no Chelsea, em Nova York, ou em praias de nudismo, em Ibiza. Ou em um hotel de luxo na floresta tropical.

Um artigo publicado na revista The Lancet se contrapõe a este tipo de comoditização. É intitulado “Princípios éticos da medicina tradicional indígena para orientar a pesquisa e a prática ocidental com substâncias psicodélicas.” O artigo aborda os problemas com relação à apropriação cultural, práticas excludentes de pesquisa e a questão das patentes envolvendo a medicina tradicional.

Outro problema grave é o ambiental, o risco real de extinção dessas espécies, por causa do turismo de extração.

Dentro dessa mesma linha do artigo, abordando algumas dessas críticas, temos o vídeo-documentário recente do The Guardian, intitulado “Waska: The forest is my Family” (Waska: A floresta é minha família).

Não vou entrar a fundo nessa problemática aqui, porque é um tema longo, mas acho que é uma questão muito interessante. Estas drogas têm um contexto na cultura indígena que não é absorvido pelos turistas, pelo contrário, é fetichizado pelo turismo.

E para ser sincera eu fico até com receio de abordar esse tema e ao invés de estar trazendo conscientização, estar incentivando o turismo psicodélico. Mas eu espero ter feito um bom trabalho para mostrar que eles não são uma boa. Tanto em termos éticos, quanto em termos do risco para a sua saúde, caso você tenha predisposição genética à certos efeitos colaterais já documentados.

Para a gente fechar esse tópico, como que esse tema se conecta com a nossa pesquisa?

Uma coisa que quero observar, como uma curiosidade pessoal na verdade, é se as estampas culturais mostram essas plantas e cogumelos alucinógenos tropicais. Seja explicitamente, ou seja, mencionando a espécie, seja indiretamente, mencionando rituais indígenas ou ilustrações que contenham essas espécies entre as plantas representadas.

Nesse processo de busca, além da consultoria de especialistas, a inteligência artificial pode nos ajudar a identificar, tanto nos textos, quanto nas ilustrações dos cartões, as espécies que possuem poderes de alterar o nosso estado normal de consciência.

Como alguns cartões mostram gravuras dos antigos viajantes, vai ser interessante também reler os trechos associados aos lugares representados ali em seus diários. E procurar menções à esses rituais e à essas substâncias psicoativas e, ainda, menções ao último D que eu gostaria de abordar hoje com vocês: o perigo (danger).

Turismo de Aventura: Perigo

Este cartão é uma estampa Liebig francesa da Amazônia. O texto “teaser” que escrevi para a nossa coleção on-line diz:

Muitas pessoas ao redor do planeta sonham em conhecer a maior floresta tropical do mundo! Este cartão colecionável, que integra a série Clima e Vegetação, era um brinde fornecido pela empresa de extrato de carne Liebig. Ele se propunha a transportar seus consumidores por um passeio imaginário nesta “exótica” natureza sulamericana. Apresenta uma ilustração romantizada da Amazônia na parte da frente. No verso, lemos uma propaganda do produto, direcionada às “donas de casa”. O texto, em seguida, introduz a fauna e a flora tropicais, com suas orquídeas maravilhosas, borboletas, miríade de insetos e pássaros com plumagens tão brilhantes quanto pétalas de flores. O cartão conclui: “É na floresta tropical que a Natureza nos mostra todo o seu esplendor.”

Esta estampa foi publicada na primeira metade do século XX. Portanto, encontra-se imbuída de valores e contextos culturais de sua época. A ilustração da floresta Amazônica, bem como o texto explicativo do verso da estampa, representa uma visão romantizada e eurocêntrica do que seria a natureza tropical.

Não há qualquer menção aos povos originários da região, que ainda habitam esta floresta. Vale lembrar que o Brasil abriga o maior número de povos isolados do mundo: são mais de cem grupos, a maioria vivendo no âmago da floresta Amazônica, que cobre quase metade do território brasileiro.

No verso da estampa, na propaganda, ao dirigir-se exclusivamente às “donas de casa”, o texto reforça estereótipos de gênero e naturaliza o sexismo na divisão do trabalho. Coloca, ainda, o produto industrial (a carne enlatada) como (supostamente) superior ao preparado artesanalmente, desvalorizando o ofício gastronômico, os saberes culinários tradicionais e o trabalho alimentar manual.

Enfim, são muitas as análises suscitadas por esta estampa cultural, mas a que mais me chama a atenção é o descompasso entre a realidade de uma floresta tropical e a ilustração do cartão.

Eu nunca estive na Amazônia. A Amazônia fica há muitas horas de avião daqui de onde eu moro, no sudeste do Brasil. Mas eu já estive diversas vezes na Mata Atlântica, que também é uma floresta tropical exuberante e selvagem. Participei de cerca de uma dúzia de expedições em florestas brasileiras, algumas como pesquisadora voluntária na área de espeleologia, outras como coordenadora de levantamentos e registros envolvendo patrimônio cultural e sítios arqueológicos.

E já li inúmeros livros e diários de viagem à Amazônia, assisti muitos documentários, conversei com viajantes e pesquisadores que estiveram lá.

Neste sentido, eu acredito que tenho propriedade para afirmar que esta estampa apresenta uma visão “domesticada”, digamos assim, da natureza tropical. Tudo parece muito organizadinho, quase como um jardim inglês que simula organicidade, mas que na verdade é minunciosamente estudado: uma “organização invisível”. As flores e orquídeas de vários tipos juntas, formando uma espécie de um mostruário, a ausência de animais e folhas secas, galhos quebrados e por aí vai.

A floresta tropical não é assim. As flores em geral ficam esparsas ao longo da mata, que é muito fechada e, em alguns pontos, quase impenetrável. Raramente se enxerga “ao longe” na floresta tropical. Há uma certa caoticidade que não está bem representada nesta imagem pacífica.

Outra coisa que esta ilustração transmite e que não tem rebatimento na floresta tropical é o silêncio. O fato é que a experiência de se observar e ler uma estampa cultural é uma experiência silenciosa. Mas a floresta tropical é extremamente barulhenta. Chega a ser quase ensurdecedora em alguns momentos.

Na verdade, o silêncio na floresta tropical não é algo muito positivo e explico com um exemplo pessoal.

Eu estava numa expedição de pesquisa numa floresta tropical. E nós estávamos prospectando uma área de mata virgem. Foi quando um dos nossos colegas mais experientes disse que era melhor sairmos logo dali, porque aquele lugar estava muito “ermo”. Eu imediatamente perguntei: “Ermo? Como assim?” E ele começou a me explicar o significado da palavra “ermo”. Eu interrompi e disse, ansiosa: “Não, não! Eu sei o que significa ‘ermo’, eu quero saber por que isso é um problema.” Não me lembro as palavras exatas, claro, mas ele explicou calmamente algo assim:

Ana, este lugar não está com um cheiro bom. Provavelmente tem algum cadáver grande por perto, a carcaça de algum animal morto. E ele pode ter sido uma presa da onça pintada. E ela pode ainda estar por aqui, porque a mata está muito silenciosa. Não estou ouvindo os animais. Quando a onça pintada chega, os animais fogem.

Eu entrei imediatamente em pânico: “E o que que a gente está fazendo aqui? Vamos dar o fora daqui agora, por favor!!!” E nós fomos embora rapidamente daquele lugar.

O fato é que eu nunca havia me dado conta, até aquele momento, de que eu poderia estar cara a cara com um dos meus animais brasileiros preferidos. Mas definitivamente é um “date” que eu só pretendo ter no virtual, em fotos e documentários. No máximo, em um BioPark ético separado por um fosso bem grande.

É um animal extremamente feroz e há caso de mortes de pessoas causadas por onças no Brasil em florestas ou próximo a elas. Apesar disto, o turismo de observação da onça-pintada na natureza movimenta milhões por aqui.

O que nos leva ao último ponto que eu gostaria de abordar: o perigo do turismo de aventura. Apesar de ser uma expedição científica, vamos combinar, eu era muito jovem, uma amadora perto daqueles exploradores experientes. E eu estava ali pela aventura. Muita gente é viciada em adrenalina e emoções fortes, como esta que vos escreve.

Se eu pudesse voltar no passado, eu conversaria com a jovem Ana de que aquelas viagens e expedições talvez não fossem uma boa para ela. Eu corri risco real de vida na floresta, mas não vou provocar Vergonha Alheia na minha nobre plateia contando agora mais dos meus casos pessoais.

Apesar deu ter viajado pouco na natureza, comparando com outros viajantes que conheço, acredito que vivi situações complicadas o suficiente para alertar os incautos de que com a natureza não se brinca. Felizmente, nada sério nunca aconteceu comigo. Nada além de roxos e machucados leves, mas eu dei muita sorte. Eu poderia ter perdido a vida nestas incursões na natureza, como outros jovens perderam.

Contudo, em defesa da jovem Ana, uma coisa que é importante pontuar e que tem conexão com as estampas culturais e os diários dos antigos viajantes, é que na minha cabeça eu não era uma pessoa sem juízo. Pelo contrário! Eu era uma pessoa sábia e precavida. Por quê? Porque o meu parâmetro de comparação eram justamente estes antigos viajantes e ilustradores científicos. Vamos combinar… eles eram brilhantes, mas talvez fossem um pouco insanos! Eu não, na minha cabeça estava correndo riscos calculados.

Ou seja, a romantização do perigo expressa nestas estampas culturais e nos diários dos antigos viajantes ensejam nas pessoas a impressão equivocada de que elas são comparativamente prudentes. Mas definitivamente eu era extremamente insensata.

Peguemos a britânica Marianne North, por exemplo, uma das minhas viajantes favoritas. Eu adoro suas pinturas e o seu diário, apesar de todos os anacronismos que ele possui. Ela correu o mundo, inclusive o Brasil, no século XIX!

Eu me recordo de pensar explicitamente na minha cabeça: “Ana, não seja ‘florzinha’. Os antigos viajantes fizeram essas coisas sem GPS, satélite, mapas precisos, medicamentos eficazes, guias experientes, helicóptero de resgate e nem corpo de bombeiros. Você não está fazendo nada demais!

Quando eu comecei a ter contato com os aventureiros contemporâneos, por meio dos seus diários de viagens, palestras, documentários, livros científicos ou até mesmo expedições, já que eu viajei com alguns deles, eu encontrei também pessoas que viviam muito mais perigosamente do que eu.

Ou seja, a sensação que eu tinha é que os antigos viajantes dos diários de viagem que eu lia, tão distantes nas páginas dos livros, tinham escapado da minha estante e estavam se materializando ali, na minha frente. E eu queria viajar na natureza como eles!

Amyr Klink, navegador brasileiro filho de um libanês com uma sueca, escreveu em seu diário de viagem (Mar Sem Fim, 2000):

Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. (…) Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver. (…) Um dia é preciso parar de sonhar e de algum modo partir. (…) O pior naufrágio é não partir..

Ele escreveu “um homem”, mas eu li “uma garota precisa viajar.” Finalmente, eu estava assistindo palestras, lendo diários de viagem ou mesmo interagindo (presencialmente e virtualmente) com as Marianne North, Saint-Hilaire, Pinzón e demais exploradores do meu tempo. E isso ainda acontece até hoje, deu ter essa sensação, lendo um livro ou vendo um documentário e reconhecendo ali rostos de pessoas conheci pessoalmente.

Por fim, as redes sociais, estas novas “estampas culturais digitais” e ubíquas, potencializaram ao máximo este tipo de comparação descabida.

E por que é descabida? Por exemplo, no meu caso, porque não há como comparar a mim com esses exploradores. O meu preparo físico, a minha força física e psicológica, o meu conhecimento da floresta, a qualidade dos meus equipamentos pessoais, meu nível de envolvimento no preparo e gestão dessas expedições, dentre diversos outros aspectos, inclusive pelo fato deu ser mulher.

Eu era uma jovem muito amadora, hoje eu vejo claramente isto, com o poder da visão retrospectiva. O amadorismo às vezes é muito mais perigoso do que a atividade em si.

Expedições na floresta são necessárias para preservação ambiental, pesquisas científicas, demarcação de territórios, mapeamento de cavernas, descoberta de novas espécies e medicamentos etc. Deixe esta atividade para pessoas capazes, experientes e qualificadas. E mesmo estas pessoas preparadas para isto precisam avaliar sabiamente quais desafios comprar, porque é a vida delas que está em jogo.

Se você é uma amadora, como eu, mas ama trekking e a natureza, existem muitas cavernas e parques manejados nos quais você pode viver experiências incríveis. Tudo isto sem colocar em risco a sua segurança ou a segurança dos espeleólogos, bombeiros, profissionais de resgate e médicos que precisarão te socorrer em uma emergência, porque você se atreveu a tentar viver uma aventura para além da sua alçada.

Humildade perante as forças da natureza é uma lição importante que a maturidade e a floresta tropical me ensinaram.

Em suma, a glamourização do perigo na selva e do turismo de aventura, nos séculos passados, certamente incentivado pelas estampas culturais e pelos diários dos antigos viajantes do século XIX, é algo que me fascina por razões extremamente pessoais.

Quero neste projeto procurar nestes cartões e nos trechos associados a eles, nos diários dos antigos viajantes, se há sinal de perigo, se eles mencionam explicitamente o quão perigoso era viajar ou frequentar estas florestas e lugares remotos.

O ser humano é o único animal da natureza que racionaliza o seu medo. Todos os demais agem de forma muito instintiva e imediata para se afastar do perigo, mas o ser humano vai ao encontro dele.

Especialistas de diversas áreas pesquisam a questão da relação humana com o perigo:  psiquiatras, psicólogos, sociólogos, antropólogos, historiadores dentre outros profissionais. Estas pesquisas podem nos ajudar a compreender o turismo de aventura e, também, a ciência em torno do “vício” no perigo.

Hoje nós sabemos que o cérebro humano só fica plenamente “pronto” – para utilizar uma linguagem leiga – por volta dos 25 anos. E a parte que amadurece por último é justamente aquela que nos ajuda a planejar, a prever consequências sabiamente e controlar os impulsos. Portanto, se você tem menos de 25 anos, como eu tinha quando viajei pela natureza brasileira selvagem, entenda que o seu cérebro não é muito bom ainda em calcular riscos.

Para fechar este tópico, eu confesso que tem algo que me causa mais pânico e medo do que a onça pintada: A Inteligência Artificial. Então, vamos a uma última reflexão para concluirmos nosso post de hoje.

Inteligência Artificial

Neste projeto, a Inteligência Artificial está sendo utilizada em diversas etapas, de diversas maneiras. No momento, estamos desenvolvendo estudos exploratórios com IAs comerciais, para experimentar o seu potencial de contribuição em diversas frentes:

  • Elaboração dos metadados descritivos das estampas culturais e do seu manual de preenchimento.
  • Identificação, seleção e ou criação de vocabulários controlados. 
  • Reconhecimento das gravuras originais que inspiraram as ilustrações de algumas séries de cartões.
  • Extração automática e adaptação gramatical para as regras contemporâneas dos dados e textos das estampas culturais, para fins de preenchimento das fichas catalográficas.
  • Produção de análises críticas sobre as estampas culturais.
  • Dentre outros.

E os resultados dos nossos testes preliminares são chocantes. Para se ter uma ideia, elaboramos uma ficha catalográfica padrão para museus, preenchemos com os dados de uma estampa Eucalol e pedimos a IA para preencher o mesmo modelo de ficha, só que para uma outra estampa, sem dar uma única instrução sequer.

A IA fez isto em trinta segundos com qualidade e excelência. Eu conferi tudo que ela fez e estava correto. E ainda reconheceu regras sutis de preenchimento.

Um dos campos era para ser preenchido com o texto do verso da estampa. A IA identificou que, no preenchimento da ficha de modelo, eu atualizei a gramática antiga para o novo acordo ortográfico da língua portuguesa, ao copiar o texto disponível no verso das estampas. Esta atualização é importante, por causa da recuperação da informação na Web. O usuário dificilmente digitará os termos com redação em desuso na sua busca. Por exemplo, “pharmácia”, com PH, hoje em dia se escreve “farmácia”, com F, em português.

Mas a IA fez serviço de estagiário preguiçoso. No campo que identifica a ilustração do antigo viajante que inspirou aquela estampa Eucalol, a IA preencheu apenas que era uma gravura de 1837, informação já disponível no verso da estampa. Não procurou na Web qual gravura era aquela, seu título original e nem o artista que a desenhou. Ou seja, não descobriu qual gravura serviu de inspiração para o desenhista daquele cartão.

Então, pedi que a IA refizesse o trabalho, buscando a informação faltante. Mais alguns segundos e a ficha foi preenchida novamente, desta vez com o nome do artista e da gravura. Além disto, como no título da gravura havia a localização exata de onde ficava aquela paisagem, a IA também atualizou o campo “localização” com informações mais precisas descobertas no título da gravura. Fez isto por conta própria, seu eu solicitar.

E nós estamos utilizando uma IA comercial sem treinamento específico. Imagina aqueles museus que já estão adotando a IA de forma mais profissional, como os museus de arte de Harvard? Tive oportunidade de realizar visitas técnicas e entrevistas neste incrível museu e coloquei para vocês nas referências deste post um projeto muito interessante deles envolvendo IA.

Nosso passo atual está sendo desenvolver uma ficha catalográfica completa com a ajuda da IA, seguindo as recomendações do Spectrum do Reino Unido, padrão mais importante do mundo para gestão de acervos, e do seu manual para gestão de coleções digitais. Tive a honra de ser convidada para participar dos workshops de feedback da elaboração deste manual, sendo que algumas das minhas sugestões foram incorporadas ao documento final. Estamos avaliando, portanto, como a IA se sai ao nos ajudar a elaborar e preencher uma ficha catalográfica complexa.

Caminhando para o fim… Entre o fascínio e o medo desta “onça digital”, prossigo tateando num universo novo proporcionado por uma tecnologia revolucionária que virará o mundo que conhecemos de ponta-cabeça.

O uso da IA na contemporaneidade envolve inúmeros desafios e problemas, detalho os principais deles em um post neste blog. Cuidado com a agenda oculta de quem não reconhece o poder e os impactos da IA!

Mas isto é assunto para nossas próximas aventuras. O nosso navio por hoje alcançou a costa. Espero que tenham apreciado a viagem. Muito obrigada!

Notas

Palestra

Curso: Travelling through Nature: Tourism, Culture, and Sustainability – Prof. Elizabeth Chant

Seminário: Travelling through Nature on Cultural Prints: Eucalol and Liebig Trade Cards – Prof. Ana Cecilia Rocha Veiga

Data: 03/11/2025 – Seminário On-line.

Slides da Palestra: Click here to download the PDF

The University of Warwick – Vídeo Institucional

Referências

As estampas Eucalol e a memória publicitária brasileira. Livro de Wagner Antônio Rizzo, 2014.

Estampas Eucalol. Catálogo raisonné por Samuel Gorberg, 2000.

Antiquity and Modern Nations in the Liebig Trading Cards. Capítulo por Marta García Morcillo, 2018.

Distinção: Crítica Social do Julgamento. Livro de Pierre Bourdieu, 1979.

Pedagogia do Oprimido. Livro de Paulo Freire, 1968.

Paulo Freire é estudado em Oxford e Harvard. Post de Ana Cecília.

A História da Arte. Livro de Ernst Gombrich, 1950.

A Guide to the Marianne North Gallery. E-Book por Kew Gardens.

Waska: The forest is my family. Documentário por The Guardian: 2025.

Admixture’s impact on Brazilian population evolution and health. Artigo Científico no Periódico Science, 2025.

Ethical principles of traditional Indigenous medicine to guide western psychedelic research and practice. Artigo Científico no Periódico The Lancet, 2023.

Does tobacco use cause psychosis? Systematic review and meta-analysis. Artigo Científico no Periódico The Lancet, 2015.

Ayahuasca Tour. Artigo por Jean-Loup Amselle no Le Monde Diplomatique, 2014.

Psychoactive substances and mermaid sightings at sea. Blog post por Martine Mussies: 2025.

Video: Liebig’s Extract of Meat Company (LEMCO) Extract Of Meat Co – Fray Bentos, Uruguay

Mahku Brazilian Indigenous Exhibition

Winds of Yawanawa – Refik Anadol NFTs Art.

Mar sem Fim. Livro por Amyr Klink, 2000.

Manual para Gestão de Coleções Digitais do Spectrum – Collections Trust, UK.

Inteligência Artificial

O impacto da Inteligência Artificial nos Museus e no Setor Cultural

Harvard Art Museums AI.

Natureza Brasileira

A importância da Amazônia para o Planeta Terra. Post de Ana Cecília.

Vídeo em inglês sobre Congresso Internacional promovido pela Sociedade Brasileira de Espeleologia.

Trailer incrível do documentário Natureza Interior mostrando cavernas brasileiras e o Vale do Peruaçu

Música

A Apple matou o Primephonic: Como as gigantes da tecnologia estão ditando o consumo de cultura no mundo. Post de Ana Cecília.

Música Clássica Brasileira – Apple Music Playlist por Ana Cecilia

Agradecimentos: Meus fervorosos agradecimentos à Liz Chant e Alberto Nogueira Veiga. Meus agradecimentos especiais à minha avó Zelina (in memoriam).

Imagens: Cataratas do Iguaçú (Pexels), Indígenas Dançando (Prefeitura de Bertioga), Nina Gualinga (Alice Aedi, British Vogue), A raça é humana (Pexels e Ana Cecília), Onças Pintadas (Wikipedia), Marianne North (Julia Margaret Cameron), Onça Pintada de IA (ChatGPT), Cisne Branco – Navio (Ascom Maceió). Estampas Eucalol e Liebig. E fotos por Ana Cecília Rocha Veiga.

Foto de Ana sorrindo. Ana é uma mulher branca de meia-idade, com grandes olhos castanhos e cabelos ondulados com mechas louras, na altura dos ombros.

Ana Cecília é professora na Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Brasil. Pesquisa gestão inclusiva e TIC para museus e patrimônio cultural. Mora em Belo Horizonte com o esposo Alberto e seus dois filhos. Ama ler, desenhar, caminhar e viajar.

 

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